Incêndio no Rossio
Era a mais bela igreja de Lisboa. Ardeu e exibe as cicatrizes com orgulho
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O altar-mor da Igreja de São Domingos sobreviveu ao terramoto de 1755 mas não resistiu ao fogo. O belíssimo teto com frescos pintados abateu e as chamas destruíram tesouros de valor incalculável, entre os quais um óleo atribuído a Josefa de Óbidos. Salvou-se a sacristia e a imagem de Nossa Senhora da Escada. O prior celebrou missas a céu aberto durante vários meses
Texto Manuela Goucha Soares
“A cidade passou a noite esmagada sob o tremendo pesadelo e (...) logo de manhã, grande multidão voltou a aglomerar-se no Largo de São Domingos, onde as ruínas da igreja são o documento vivo e desolador do trágico sinistro”, lê-se na primeira página do “Diário de Lisboa” de 14 de agosto de 1959, com a edição visada pela comissão de censura.
O sinistro poderá “ter sido provocado por uma faúlha saída de chaminé próxima”, escreveu um dos repórteres do vespertino, na mesma edição, lembrando que existem muitos restaurantes e pensões na zona. “Os momentos de angustia viveu-os a cidade inteira ao cair da noite, á hora em que os habitantes recolhem aos lares para o jantar. Aqueles que enxameavam ainda as ruas da Baixa, correndo para os elétricos e os os autocarros, ou atardando-se nos cafés, não mediram logo a importância do caso, pois o fogo ia minando, lenta e surdamente, na voragem implacável, o interior do templo de São Domingos. Havia para aqueles lados uma fumarada que subia da ondulação dos telhados e tisnava o céu toldado de nuvens”.
Eram oito e meia da noite e a confusão na Baixa foi total. Desolada e impotente, Lisboa assistia a mais um incêndio que ameaçou vários quarteirões da área. Traiçoeiro, o fogo foi “minando, lenta e surdamente, na voragem implacável, o interior do templo de São Domingos. Pouco passava das oito e meia – a aflitiva chamada para os Sapadores Bombeiros foi ali recebida ás 20 e 40 – quando se deu pelo incêndio”.
O teto abateu e matou dois jovens sapadores bombeiros: Francisco da Silva Gomes e João Francisco
A essa hora, os cafés do Rossio estavam cheios de turistas que saboreavam bebidas frescas nas esplanadas. Os portugueses pediam bicas e davam dois dedos de conversa de fim de tarde, enquanto espreitavam a maravilhosa caixa de atualidades que começara a emitir dois anos antes, a preto e branco – a cor só chegaria aos ecrãs das televisões portuguesas, um regime e muitos anos depois.
Naquele entardecer de 13 de agosto, havia movimento e animação entre os que frequentavam a pastelaria Suíça, os cafés Gelo ou Nicola, e o moderníssimo snack-bar Piquenique, quando os transeuntes se aperceberam de que algo muito grave se passava. O incêndio – que começara surdo – descontrolou-se quando os bombeiros abriram as imponentes portas de mogno da igreja de São Domingos. O teto abateu e matou dois jovens sapadores bombeiros: Francisco da Silva Gomes e João Francisco.
“Na Baixa, a multidão corria desordenada, transida, naquele esboço de panico indeciso, que começa por avassalar as almas e se torna contagiante, aglomerando-se no Rossio, á volta do Largo de São Domingos, crescendo pela maré pelas congostas que levam para os lados do Hospital de São José”.
A notícia espalhou-se e os populares acorreram em força. Os mirones espalharam-se num autêntico corrupio pelos miradouros do Monte, Santa Luzia, São Pedro de Alcântara, etc.
Mas foram muitos os que vieram para ajudar no que fosse preciso, e combater pequenos focos de incêndio que despontavam aqui e ali; a reportagem do “Diário de Lisboa” informa-nos que foram os populares que apagaram o fogo que se propagou à barraca do Metropolitano de Lisboa na Praça da Figueira.
A cidade solidarizou-se como pode. Muitos estabelecimentos comerciais da zona tiveram prejuízos, mas os bombeiros evitaram que o incêndio propagasse aos quarteirões próximos na Rua Barros Queirós e na Travessa de São Domingos.
O teto, outrora deslumbrante, abateu quando os bombeiros abriram a porta. Salvaram-se as “altas e grossas portas em mogno”, a sacristia e as imagens de Nossa Senhora da Nazaré e da Senhora da Escada. A residência paroquial também escapou – “viviam ali quatro padres, entre os quais o prior”, conta ao Expresso o padre Vítor Gonçalves, atual responsável pela igreja que todos os dias recebe visitantes (nacionais e estrangeiros) que se deslumbram com a beleza disruptiva da destruição.
A 15 de agosto, feriado da Assunção de Nossa Senhora, “o pároco de S. Domingos celebrou missa na igreja da Vitória, em ambiente de significativa emoção (...) com a presença de grande número de fiéis que habitualmente ouviam missa no templo que as chamas consumiram”. A cerimónia foi presidida pelo cardeal-patriarca [Gonçalves Cerejeira].
O cónego Correia de Sá [Asseca como era sempre referido] sabia que tinha de continuar a celebrar missa diariamente se quisesse preservar a igreja. O edifício pertencia [e pertence] ao Estado e não tinha seguro; além disso, a edição do “Diário de Lisboa” de 14 de agosto lembrava aos leitores a existência de um “plano de urbanização da Baixa, que incluía a construção de uma grande praça, de área idêntica á do Terreiro do Paço, ligando-se o Rossio e a Praça da Figueira, projeto que não chegou a ser concretizado devido à existência da igreja de São Domingos, o que, sob o ponto de vista de urbanização constituía um importante problema”.
Plano urbanístico da década de 50 pensou arrasar quarteirões para ligar o Rossio à Praça da Figueira
Para evitar que o projeto ganhasse força com a destruição da igreja, o cónego Correia de Sá decidiu continuar a celebrar missa todos os dias, fosse nas igrejas vizinhas (Vitória, São José, São Nicolau), fosse, quando chovia, na sacristia, fosse a céu aberto como aconteceu várias vezes nos meses seguintes até ser colocado um telhado provisório.
O padre Vítor Gonçalves conta que o seu antecessor arranjou “cadeiras desdobráveis para substituir os bancos da missa” que tinham sido destruídos pelo fogo.
Numa caixa intitulada “Cena Deplorável”, o “Diário de Lisboa” lamenta que um dos seus jornalistas que se dirigia ao “local do sinistro, fosse impedido por um agente da P.S.P, na Praça do Marquês de Pombal, de descer a Avenida da Liberdade com a sua viatura, apesar de ostentar, no pára-brisas, o distintivo autenticado pelo comando da referida corporação para facilitar o trânsito de automóveis de jornalistas em circunstâncias idênticas”.
O repórter foi “violentado na sua integridade moral e física” pelo referido agente, e o jornal apresentou queixa ao Governo Civil da capital. Vivíamos em ditadura, mas isso não impediu o DL de transmitir o caso aos seus leitores, nem de criticar – na primeira página – o “desleixo” das entidades responsáveis pela boa sinalética nas estradas. Se cada uma “tomasse as providências que lhe compete, certamente, não teríamos que lamentar com tanta frequência esses acidentes trágicos que lançam a dor e o desespero nas famílias”.
O ano de 1959 foi fértil em acontecimentos políticos que perturbaram a ditadura portuguesa. No início de agosto morreram 50 carregadores ‘indígenas’ no porto de Bissau, que participavam numa greve coordenada pela União dos Trabalhadores da Guiné, e que foi violentamente reprimida pelas autoridades coloniais. Quatro meses antes, em março, na noite de 11 para 12, tinha fracassado o golpe da Sé, organizado por vários militares e civis (maioritariamente católicos progressistas) para derrubar o regime.
O general Humberto Delgado partira entretanto para o exílio, mas deixara atrás de si um país marcado pela sua campanha para as eleições presidenciais de 1958.
Voltando à edição do “Diário de Lisboa” de 14 de agosto, sabemos que os repórteres fotográficos António Marques e Alberto Peixoto são os autores das fotos publicadas. Os textos, precisos e descritivos assemelham-se a um filme da tragédia, mas não estão assinados – provavelmente, terão sido fruto do contributo de vários repórteres.
E também sabemos, porque os factos o comprovam que, cinco anos depois, o Rossio, desolado e impotente, voltou a ser palco de um novo incêndio que destruiu o Teatro Nacional.
O altar-mor da Igreja de São Domingos sobreviveu ao terramoto de 1755 mas não resistiu ao fogo. O belíssimo teto com frescos pintados abateu e as chamas destruíram tesouros de valor incalculável, entre os quais um óleo atribuído a Josefa de Óbidos. Salvou-se a sacristia e a imagem de Nossa Senhora da Escada. O prior celebrou missas a céu aberto durante vários meses