Reportagem | Aluimento em Borba

O que a terra levou

A estrada desapareceu e as pessoas caminham para ver o que falta. A derrocada numa pedreira em Borba provocou dois mortos e há três pessoas desaparecidas. Era uma tragédia à espera de acontecer. Pelo menos desde 2001 que as empresas locais temiam um acidente e a Direção-Geral de Energia e Geologia estava a par dos receios

Texto Ricardo Marques Fotos José Fernandes Vídeo SIC Notícias Edição de Vídeo tiago pereira santos

É tudo uma questão de hábito e é por isso que Manuel Serra, 57 anos, nem pisca os olhos quando todos se encolhem. Um camião acabou de largar meia dúzia de pedregulhos do alto de uma escombreira, a montanha de pedras que cresce em direção ao céu e junto à estrada municipal 255, que liga Borba a Vila Viçosa. O estrondo ecoa, mas Manuel, acostumado até ao estrondo das explosões que vão abrindo a pedreira, permanece impávido e sereno. Algo que muda drasticamente quando lembra o que aconteceu na véspera. “Nem sei o que parece. Foi como um trovão, mas mil vezes mais forte. Depois levantou-se uma nuvem de fumo.”

Quando a poeira assentou, foi como se uma enorme certeza tivesse caído num chão cheio de receios. Parte da estrada centenária - que foi real, por ligar ao Palácio de Vila Viçosa, depois nacional e agora era apenas municipal - tinha desaparecido numa derrocada que, segundo testemunhas, terá arrastado duas ou três viaturas. José Ribeiro, comandante Distrital de Operações de Socorro de Évora, admitiu que encontrar e resgatar os corpos dos ocupantes dos carros, três ou quatro pessoas, será uma tarefa difícil e morosa. O impacto dos blocos de mármore e da terra na água que esconde o fundo de uma pedreira desativada há cerca de um ano provocou uma enorme onda que galgou para a pedreira adjacente, onde alguns funcionários estavam a trabalhar. Uns conseguiram fugir a tempo, mas dois morreram - um dos corpos foi retirado ao final da tarde desta terça-feira.

Durante todo o dia, e apesar dos pedidos das autoridades, dezenas de pessoas curiosas percorreram a pé a estrada feita de pedras de basalto que vai de Borba até ao local onde não há nada. José Leal, que como Manuel Serra trabalha numa das pedreiras, estava ali a ver quem passava e a cumprimentar uns e outros. “Isto foi uma tragédia. Mas podia ter sido muito pior. Se tivesse acontecido uma hora mais tarde, às cinco, não sei como teria sido. É a essa hora que toda a gente sai do trabalho aqui”, explica, sem conseguir mostrar grande surpresa com o sucedido. De certo modo, em Borba e em Vila Viçosa, é como se todos soubessem que podia acontecer sem que ninguém soubesse quando.

À tarde, no estúdio maior da Rádio Campanário, em Vila Viçosa, sentaram-se a uma mesa três empresários do sector do mármore e dois engenheiros. Faltou o presidente da Câmara de Borba, porque à mesma hora estava a acompanhar a visita do Presidente da República ao local do acidente. A Campanário saltou para a primeira linha das notícias horas depois da derrocada, devido a uma notícia publicada em 2014 que dava conta dos alertas de empresários para o estado precário da via. Mas o problema e os alertas são ainda mais antigos.

“Desde 2001 que temos vindo a monitorizar aquela fratura e chegámos a fazer intervenções no local”, precisou Joana Pita, engenheira da Plácido José Simões SA, uma das empresas que opera no local. “Em 2015, um ano depois da reunião que houve com a autarquia, solicitámos mais um estudo ao Instituto Superior Técnico sobre a situação”, explicou ao Expresso, confirmando que todos os documentos e todas as intervenções são do conhecimento da Direção-Geral de Economia e Geologia (DGEG). “Nem podia ser de outra forma. Toda a nossa atividade é monitorizada”, acrescentou Jorge Plácido, o proprietário da empresa.

A 27 de junho de 2014, os empresários elaboraram um “Memorando sobre a problemática da estrada 255” no qual defendiam que a estrada fosse mesmo encerrada definitivamente - devido à quase impossibilidade de ser reparada. “O processo foi desencadeado pela DGEG, que vendeu a ideia à Câmara e nós éramos os terceiros na linha. Éramos a parte mais fraca e após a reunião com aquelas entidades ficámos à espera. Mas não aconteceu nada”, afirmou Luís Sotto Mayor, da empresa Marmetal. Segundo o mesmo empresário, os empresários eram também um grupo pouco unido. “Houve quem se opusesse à nossa proposta, alegando que queríamos apenas explorar aquela zona e que, sem a estrada, os acessos ficariam demasiado difíceis. Infelizmente, o tempo acabou por nos dar razão.”

Durante quatro anos, recordam, nada foi feito e a estrada, a ligação mais rápida entre Borba e Vila Viçosa, manteve-se aberta - a variante é um caminho mais distante e, segundo moradores ouvidos pelo Expresso, tem pelo menos um cruzamento muito perigoso. “Devido às águas subterrâneas, aquele troço da estrada 255 era como uma ponte”, descreveu a engenheira Joana Pita, na Plácido Simões. “Neste momento, a estrada não tem condições para continuar aberta. Todo o trajeto é assim”, admitiu. Artur Batanete, outro dos empresários, confessou estar “revoltado” com o que sucedeu. “Apesar de todos os avisos, e depois destes anos todos, sinto uma grande revolta. Estamos a falar de vidas que se perderam. É um assunto muito sério.”

O Ministério Público anunciou entretanto a abertura de um inquérito para apurar as causas da derrocada. E, ao final da tarde desta terça-feira, o ministro da Economia, Pedro Siza Vieira, anunciou também a abertura de um inquérito e lembrou que a estrada estava sob alçada municipal desde 2005. “Neste momento, o mais importante é apoiarmos aqueles que estão a tentar resgatar os corpos e a tentar ajudar a consolidação daquela situação”, referiu o governante. Ao final da manhã, no Quartel dos Bombeiros Voluntários de Borba, o autarca António Anselmo tinha dito mais ou menos o mesmo, recusando qualquer comentário sobre uma eventual responsabilidade da autarquia. “Na altura certa irei falar sobre isso.”

No local da derrocada, cerca de meia centena de operacionais permanecia ao início da noite empenhada na operação de resgate. Bombas para retirar água, um íman para procurar as viaturas submersas e “muito cuidado”, como referiu o comandante José Ribeiro.

ACIDENTE

Estrada de Borba fora dos planos de obras da Câmara até 2022

Estrada Municipal 255: não havia qualquer melhoramento previsto <span class="creditofoto">Foto José Fernandes</span>

Estrada Municipal 255: não havia qualquer melhoramento previsto Foto José Fernandes

A via onde se deu o abatimento de terras na segunda-feira está excluída da lista de estradas a carecer de “investimento mais urgente”, segundo as Grandes Opções do Plano do município de Borba para o Período 2019-2022

Texto Paulo Paixão

A Estrada Municipal 255 que atravessa o concelho de Borba, onde nesta segunda-feira uma derrocada provocou a morte de duas pessoas e mais três são dadas como desaparecidas, está fora da lista de vias que a Câmara local elegeu para ter obras de beneficiação.

A “valorização da rede viária” do concelho alentejano, entre 2019 e 2022, abarca cinco estradas, mas delas não faz parte a EM 255 – conforme as propostas de Grandes Opções do Plano para o período em causa e de Orçamento Municipal para o próximo ano.

No documento, com a data de 26 de outubro, a autarquia afirma que “foi efetuado um levantamento dos caminhos rurais, estradas e arruamentos municipais que no concelho necessitam de investimento mais urgente e que, atendendo ao deterioramento dos pavimentos, implicam um elevado investimento”.

Além de três rubricas genéricas de melhoria da rede viária (valorização de estradas e arruamentos; sinalização; e reconstrução de caminhos rurais), os planos da autarquia abrangiam cinco estradas: Rio de Moinhos - Estremoz; Orana - Santo Aleixo (Monforte); Orada - São Domingos (Estremoz); Alcaraviça - Aldeia de Sande; e Rio de Moinhos - Alfaval.

No período 2019-2022, a autarquia conta afetar €1,15 milhões para obras nas vias municipais, sobretudo em trabalhos de repavimentação.

No entanto, a repartição da verba é muito desigual. Por exemplo, em 2019, as melhorias da rede viária do concelho contam apenas com 54 mil euros, segundo os planos da autarquia. A grande fatia do bolo ficará para 2020, ano em que a Câmara conta investir 822 mil euros.

A autarquia tem um orçamento anual de €8,2 milhões (valores para 2019).

Presidente “nunca na vida” foi alertado

A Câmara de Borba é presidida por António Anselmo, que em 2017 iniciou um segundo mandato. O autarca foi eleito por um grupo independente, o Movimento Unidos por Borba (MUB).

Citado pela agência Lusa, António Anselmo disse nesta terça-feira que “nunca na vida” foi informado da alegada perigosidade da estrada que ruiu parcialmente.

Questionado se, numa reunião com técnicos dos serviços regionais de Geologia, não tinha já sido alertado para os riscos na via, o presidente da câmara afirmou à Lusa recordar-se, efetivamente, de há quatro anos ter participado “nessa reunião” com técnicos de Geologia e Minas da antiga Direção Regional de Economia e com industriais do sector dos mármores.

Mas, segundo António Anselmo, em 'cima da mesa' estava “a possibilidade” de interromper a estrada e “os empresários nunca se entenderam”, ou seja, “não houve consenso”.

A “ideia”, de acordo com o autarca, “não era cortar a estrada; era partir a estrada para fazer exploração nesse sítio onde uma parte caiu”.

“A estrada passava a ser pedreira, era essa a ideia”, disse Anselmo à Lusa. No entanto, remeteu mais esclarecimentos para momento posterior, por necessitar de consultar documentação sobre a reunião.

Já industriais do sector dos mármores na região consideraram, em declarações à Lusa, que a “tragédia” de segunda-feira, com o deslizamento de terras para uma pedreira, com vítimas mortais, poderia ter “sido evitada” porque “os problemas” da estrada estavam identificados.