RICARDO COSTA

A minha estrada de paralelepípedos desapareceu

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<span class="creditofoto">Foto Nuno Veiga/Lusa</span>

Foto Nuno Veiga/Lusa

Passei por aquela estrada centenas de vezes. Nos últimos anos, quando ia de Lisboa ou regressava do Alentejo, seguia quase sempre pela estrada nova e mais rápida. Mas ainda este ano lá passei umas vezes, muitas vezes para ir aos supermercados, que os gigantes da distribuição colocaram ali mesmo, entre Vila Viçosa e Borba. Era (e é) uma daquelas contradições que o país tem para nos oferecer: uma estrada muito antiga de paralelepípedos a ligar duas vilas históricas, pontuada por um Lidl, um Intermaché e, a rematar, um Pingo Doce. Não havia como não andar por aquela estrada.

A estrada 255 (só ontem é que lhe soube o nome ou número) sempre foi, para mim, a velha estrada de paralelepípedos. Era o ponto que assinalava a chegada ou a partida do Alentejo. Não por estar literalmente a chegar – de Borba até a casa dos meus avós, hoje dos meus tios e primos, ainda distavam 28 quilómetros... –, mas pelo som do carro a andar em cima dos paralelepípedos.

Aquele som, que ainda este ano ouvi a caminho do supermercado, era o sinal de que se estava quase a chegar a casa ou a partir de mais um fim de semana ou férias em Terena. Os meus filhos, como os jovens e as crianças de hoje, não sabem o que é viajar sem ecrãs para olhar e muita coisa para distrair.

Há 50, 40 ou 30 anos, viajávamos guardando na memória pontos-chave. Podia ser algo na paisagem, uma casa ou rua, um restaurante na estrada ou mesmo um som. O meu caminho para o Alentejo tinha aqueles pontos-chave de que nunca me vou esquecer: a Ponte de Vila Franca, a Estalagem do Gado Bravo, a paragem em Vendas Novas ou Montemor, os camiões na estrada de Estremoz. Depois vinham as placas toponímicas mais bonitas do mundo, gravadas em mármore nas paredes de Borba, e os célebres antiquários. A seguir, uma praça larga e o som dos paralelepípedos.

Quando ouvia esse som, sabia que estava a começar a chegar. A seguir vinham as pedreiras, o Paço Ducal à direita, a curva à esquerda junto ao Castelo de Vila Viçosa, depois o caminho para o Alandroal e, finalmente, Terena.

No sentido inverso, aqueles dez quilómetros do soar do carro nos paralelepípedos eram uma espécie de portagem de quem estava de partida. Quando aquele som desaparecesse era sinal de que estávamos a chegar a Borba e, pouco depois, à estrada de Estremoz rumo a Lisboa, apenas com a esperança de uma paragem nas empadas de Montemor ou nas bifanas de Vendas Novas.

Essa estrada entre Borba e Vila Viçosa era mesmo de uma categoria diferente. Não tinha a extensão do horizonte, o montado ou os animais. Não era especialmente bonita, mas era única. Aquela saída de Vila Viçosa, com muros baixos e oliveiras até chegar às pedreiras, sempre sem se poder acelerar muito e com aquele som dos paralelepípedos que já se escuta em poucos lugares

Aquele som não era (nem é) o mesmo que ver o Castelo de Terena. Mas era, para uma criança no banco de trás, o sinal para não se fazer mais a pergunta do “quando é que chegamos?” e começar a contagem decrescente para o Alentejo. Podia sentar-me mais direito e adivinhar tudo o que se seguiria. O meu Alentejo era logo a seguir àquele som e eu conhecia aquilo tudo de cor.

Mais tarde, quando comecei a guiar optei por caminhos alternativos. Fiz o caminho por Reguengos, mas não era a mesma coisa. Quando a A6 chegou, passei a sair na Azaruja rumo a São Miguel de Machede e ao Redondo. Não era fácil explicar porque preferia as estradas secundárias. Mas quem conhece e percebe o Alentejo, sabe do que estou a falar. Mesmo assim, acabei por me render ao trajeto da minha infância, com uma diferença, além da A6. Aquela estrada nova tirava-me Borba e Vila Viçosa e o som que as ligava.

Essa estrada entre Borba e Vila Viçosa era mesmo de uma categoria diferente. Não tinha a extensão do horizonte, o montado ou os animais. Não era especialmente bonita, mas era única. Aquela saída de Vila Viçosa, com muros baixos e oliveiras até chegar às pedreiras, sempre sem se poder acelerar muito e com aquele som dos paralelepípedos que já se escuta em poucos lugares.

Ontem, a estrada ruiu, entalada entre duas pedreiras que sempre fizeram parte da paisagem. Já tiveram melhores dias e muito mais gente a trabalhar nelas. Os anos de ouro eram os das histórias que ouvíamos nos cafés e nas tascas sobre as vendas de mármore para os palácios de Saddam e dos emires. Alguns técnicos e operários iam ao Golfo para acompanhar as construções. Quando regressavam contavam histórias das Arábias. As guerras do Golfo acabaram com isso tudo.

Há uns meses li um texto onde Álvaro Siza dizia que os mármores de Estremoz eram os melhores do mundo. Não era uma opinião, era um facto que tinha a ver com a reconstrução de um projeto de Alvar Aalto, onde os mármores de Carrara fizeram má figura. Testaram todo o tipo de mármores e ganhou Estremoz.

Este ano, pela mão da Guta Moura Guedes, o nosso mármore marcou presença em Veneza, com assinatura de grande arquitetos e designers. Ainda bem, porque é uma forma de valorizar um dos recursos mais incríveis que temos. Mas esse recurso tem outro lado que ontem vimos de forma trágica e espetacular: o de uma indústria que já viu melhores dias, enfiada numa paisagem difícil, de autarquias com poucos recursos e problemas mais graves do que uma estrada que estava ali desde sempre e que se havia de aguentar enquanto Deus quisesse.

Só não estamos perante um segundo Entre-os-Rios porque não ia a passar um autocarro da Rodoviária. Ou um transporte escolar. Ou turistas a caminho do Palácio de Vila Viçosa. Ou tantos, como eu, à procura do supermercado onde encontrar isto ou aquilo.

A estrada de paralelepípedos começou a morrer há uns anos com a chegada da estrada nova. É assim em todo o lado, temos mais pressa, direito a uma via melhor e Borba e Vila Viçosa não podiam ter o trânsito a cruzar as suas ruas. Só não precisavam era de ver a sua estrada a cair cinquenta metros em tão poucos segundos, levando cinco dos seus para a morte.