Ideias interditas sobre o FMI
Não sei se nos devamos espantar, pois é uma repetição já enfadonha, ou antes reconhecer a nostalgia e o acarinhamento com o que é nacional e que, como um cuco de relógio, perpassa pelo espaço público sempre que há uma personalidade portuguesa candidata a um lugar de relevo na cena mundial. Esta síndrome de Ronaldo persegue-nos e cria uma espécie de pensamento mágico que, à escala de um país que se sabe de influência reduzida, projeta desígnios, mitos e saudades, que vão, nos nossos dias, da alegada influência europeia dos dirigentes, que teriam captado o ouvido dos poderosos, quais grilos falantes, até ao sucesso no futebol, tantas vezes feito de arremedos à Éder. Esta psicose simbólica foi o tema que se cruzou frequentemente com a análise de Eduardo Lourenço, como é costume ser notado.
Pois é disso que somos servidos nesta questão de Centeno a diretor do FMI. A hipótese, inicialmente tratada como anedótica, passou depois a ser considerada consistente à força de ser repetida. Entrou então na dimensão dos editoriais, quando alguém notou que o trajeto da candidatura ao Eurogrupo foi mesmo assim, primeiro irrelevante, depois triunfante, e, do mal o menos, para um diretor de jornal mais vale repetir um nacionalismo congratulatório de que toda a gente se esquecerá no dia seguinte a uma eventual rejeição, mas que será elogiado como premonitório se houver uma consagração. Por isso, no totoloto das hipóteses, a melhor chance de sucesso editorial, mesmo na derrota, é jogar a cartada centenista. O que é nacional é bom, já se sabe, como nas farinhas (é bom para o país, assim será dito, mas menos bom para Costa, que veria fugir um trunfo eleitoral, e mesmo para Centeno, que poderia arriscar uma carreira apagada ou passar a ver o seu nome convocado em manifestações de rua de Buenos Aires a Luanda, mas que importa isso agora que chegou o calor?).
Não me atrevendo a destoar desta epifania de verão, sugiro-lhe apesar disso dois pensamentos dissonantes.
O primeiro é banal. A ordem de Bretton Woods consagra, desde 1944, essa regra não-escrita de que os EUA indicam o chefe do Banco Mundial e os europeus o do FMI, em que em todo o caso a Casa Branca é o maior acionista. Dos pilares desse velho acordo já sobra pouco, mas a regra sobreviveu sempre. Assim, quando em 2007 Rodrigo Rato abandonou o cargo no FMI para se dedicar aos confortos de uma presidência do Bankia (isso viria depois a levá-lo à prisão, onde ainda cumpre pena), veio o socialista francês Dominique Strauss-Kahn, que se demitiria devido a acusações de abusos sexuais, e logo depois Christine Lagarde, ministra de Sarkozy. Com a sua saída, é ainda um ministro francês quem coordena a escolha do próximo indigitado, sabendo-se de quatro candidatos: dois dos cruzados da austeridade, o conservador Olli Rehn, governador do banco central da Finlândia, que foi o comissário da Economia da Comissão Barroso, entre 2010 a 2014, e o socialista Jeroen Dijsselbloem, ex-ministro das Finanças da Holanda e presidente do Eurogrupo entre 2013 a 2018, a que se somam os dois novatos, Nadia Calviño, uma funcionária de topo na União Europeia feita ministra da Economia de Espanha há uns meses, e Mário Centeno, mais experiente e com um resultado português que impressiona o olho europeu, mas (inevitavelmente) fracassado numa pálida presidência do Eurogrupo. Para os problemas da dimensão do FMI, são todos candidatos frágeis e que começariam com pouco apoio.
A pergunta que sobra é: por que carga de água é que alguém há-de querer ser o chefe de uma organização tão incapaz e tão agressiva?
Ora, o que parece estar sempre fora de cogitação (até um dia?) é que seja indicado alguém do mundo e não da Europa. Adam Tooze, um crítico da ordem e desordem global, lembrou dois nomes possíveis, ambos conservadores: o mais destacado seria Raghuram Rajan, que foi economista-chefe do FMI (e ficou conhecido por criticar a desregulação financeira ainda antes da crise do subprime em 2007 e 2008), foi depois governador do banco central da Índia, não foi reconduzido por Modi e regressou à sua Universidade de Chicago, onde prossegue a carreira de ordoliberal tradicional; e o antigo primeiro-ministro de Singapura, Tharman Shanmugaratnam, que foi o primeiro asiático a dirigir uma das mais poderosas estruturas do FMI, o International Monetary and Financial Committee. São ortodoxos, não mudariam o cânone, mas deslocariam o centro de gravidade de uma convenção que é uma velharia para o mundo como ele é, com as suas atuais elites dominantes. Para já, isso dificilmente acontecerá.
O segundo pensamento dissonante é que o FMI devia ser desmantelado para dar lugar a algo mais parecido com o que foi rejeitado em 1944. Nesse tempo, Keynes propunha que o Banco Mundial fosse um banco e o FMI tratasse dos equilíbrios internacionais, criando compensações entre economias deficitárias e superavitária, em vez de as acentuar. Há vários caminhos nesse sentido. O pequeno passo mais simples seria que os direitos de voto coincidissem com o peso efetivo das economias, para ajudar a modificar a resposta de catálogo num qualquer programa de ajustamento. Ora, hoje a União Europeia a 27, sem o Reino Unido, tem 25,6% dos votos (a Alemanha tem 5,3% e a França tem 4%), os EUA têm 16.5%, a China 6% e a Índia 2,6%. Se se considerasse a verdade das economias, segundo Tooze, a UE deveria ter 23,3%, a China 12,9% e os EUA apenas 14.7%. Só que a Casa Branca ficaria com menos do que os 15% que dão direito de veto a decisões do conselho de administração. Portanto, não vai acontecer. O outro caminho, certamente mais consistente, seria definir uma abordagem anticíclica: quando há uma recessão, o FMI não jogaria a cartada do terminator, procuraria antes atenuar a crise, responder à recessão e promover a recuperação do emprego, da procura agregada e do investimento. Mas isso parece ainda mais difícil. Ora, na falta desta viragem, o FMI continuará a ser o que é, uma organização perigosa para o mundo.
Então a pergunta que sobra é: por que carga de água é que alguém há-de querer ser o chefe de uma organização tão incapaz e tão agressiva?