CULTURA

O Eça combativo e humanista nunca foi esquecido em Havana

Cartaz do “O nosso cônsul em Havana”

Cartaz do “O nosso cônsul em Havana”

Para assinalar os 100 anos das relações diplomáticas entre Portugal e Cuba, será exibido esta quarta-feira em Havana o filme “O nosso cônsul em Havana”, de Francisco Manso. Trata-de de uma longa metragem que resulta da série de 13 episódios que está a ser exibida na RTP e que procura mostrar o lado menos conhecido do escritor, que se bateu pela defesa dos Direitos Humanos dos trabalhadores chineses e africanos enquanto foi cônsul na capital cubana no século XIX

Texto Liliana Coelho

Quem passa pelo café La Columnata Egipciana, no centro de Havana, não consegue ficar indiferente ao grande mural de azulejos com a figura de Eça de Queiroz e o subtítulo da obra “A Relíquia”: “Sobre a nudez forte da verdade o manto diáfano da fantasia”. No fundo, trata-se de uma singela homenagem ao escritor português que era presença assídua daquele espaço enquanto exerceu funções de diplomata na capital cubana entre dezembro de 1872 e março de 1874.

Ao contrário do que se poderia esperar, os cubanos têm ainda viva a memória do antigo cônsul português em Havana, sobretudo pela sua luta em defesa dos Direitos Humanos face à situação dramática dos trabalhadores chineses e africanos que iam trabalhar para os engenhos de açúcar da antiga colónia espanhola. Será essa faceta de Eça que será mostrada no filme “O nosso cônsul em Havana”, de Francisco Manso, que terá a sua estreia mundial esta quarta-feira em Havana, no âmbito da comemoração dos 100 anos das relações diplomáticas entre Portugal e Cuba. Esta longa metragem foi produzida a partir da série de 13 episódios que está a ser exibida na RTP e que retrata esse lado mais humanista e menos conhecido do escritor.

Nomeado cônsul de Portugal nas Antilhas Espanholas a 16 de março de 1872, Eça assumiu o cargo a 20 de dezembro, tendo-se mantido em funções durante 14 meses. Foi uma curta mas intensa missão diplomática, antes de ser transferido para o consulado inglês de Newcastle.

“Desde o primeiro até ao último dia, Eça de Queiroz bateu-se pela defesa dos direitos dos trabalhadores que eram quase tratados como escravos. Enquanto nosso cônsul em Havana, teve um papel muito importante nessa luta muito antes da abolição da escravatura, desafiando o poder local e enviando cartas a Lisboa a alertar para a situação”, afirma ao Expresso Francisco Manso, o realizador do filme que foi rodado durante três meses entre vários locais de Portugal e Cuba.

O Eça diplomata é desconhecido para muitos portugueses mas bastante lembrado em Havana <span class="creditofoto">Foto D.R.</span>

O Eça diplomata é desconhecido para muitos portugueses mas bastante lembrado em Havana Foto D.R.

Transformar a série numa longa metragem de 2h15, em castelhano, foi uma tarefa feita em “tempo recorde”, durante cerca de dois meses, depois de um trabalho de edição e produção que demorou seis meses. Este lado de Eça que é muito desconhecido para muitos portugueses mas bastante lembrado em Havana surpreendeu o realizador durante as filmagens na ilha. “Por cá reconhecemos mais o Eça de monóculo, o autor de grandes obras literárias. Mas na altura ele tinha 27 anos, era um Eça jovem com uma energia enorme e uma visão do mundo muito eurocêntrica, tendo sido muito combativo contra a quase escravatura. E esse lado não é esquecido por lá”, sublinha Francisco Manso.

Ficção inspirada em factos históricos

Neste trabalho, Francisco Manso contou com o apoio do Instituto Diplomático, do MNE, tendo ainda consultado documentos cedidos pela Fundação Eça de Queiroz, como relatórios enviados a Lisboa e excertos de cartas enviadas pelo escritor a Ramalho Ortigão. O filme é uma ficção inspirada em factos históricos, mas sendo um dirigido filme para o grande público tem de ter ritmo, não pode ser demasiado literário, segundo o realizador. “O que fizemos foi pegar em Eça e tirá-lo da poeira das prateleiras e dos alfarrabistas e abri-lo para o grande público. É por isso um filme de aventura. Tentámos mostrar o lado humano e lutador do diplomata e escritor através da ficção para o público”, acrescenta.

Para Francisco Manso, este filme revela um lado do Eça desconhecido, que deve ser um motivo de orgulho para Portugal e para os portugueses. “Espero que esta história seja recordada e falada por muito tempo pois merece. Que Eça seja falado lá fora para nós é muito importante”, conclui Francisco Manso.

Francisco Manso, realizador da longa-metragem que será mostrada em Havana em estreia mundial <span class="creditofoto">Foto João Carlos Santos</span>

Francisco Manso, realizador da longa-metragem que será mostrada em Havana em estreia mundial Foto João Carlos Santos

Além do realizador, a exibição do filme em Havana contará também com a presença do embaixador Luís Faro Ramos, presidente do Instituto Camões, que exerceu funções diplomáticas na capital cubana entre 2015 e 2017.

Segundo Luís Faro Ramos, é muito importante que o filme tenha a sua estreia mundial em Cuba, uma vez que ainda hoje Eça de Queiroz é recordado em Havana pelo seu papel de defesa dos Direitos Humanos,. “Enquanto embaixador tive a oportunidade de constatar isso. Apesar do patente desconforto das autoridades espanholas, isso não demoveu Eça de lutar na altura por aquilo que acreditava. A sua tenacidade na defesa dos trabalhadores chineses foi indubitável”, sustenta o embaixador.

Filme poderá integrar circuitos do Instituto Camões

O Instituto Camões pretende integrar o filme nos seus circuitos de divulgação cultural pelo mundo já a partir de 2020, podendo “O Nosso Cônsul em Havana” ser exibido também na Fundação Eça de Queiroz, no concelho de Baião, juntando grupos de especialistas para um debate. A exibição do filme da China também está a ser estudada, uma vez que há um grande interesse nesta temática por parte de Macau.

Questionado sobre a cooperação com Havana, Faro Ramos refere que há projetos em curso, recordando que enquanto embaixador em Havana teve oportunidade de participar no lançamento do leitorado de Portugal na Universidade de Havana, instituindo a Cátedra Portuguesa e fundando na própria embaixada uma biblioteca, a que foi dado o nome de Eça de Queiroz, tendo ainda celebrado parcerias com entidades cubanas na área da música e da literatura.

Luís Faro Ramos, antigo embaixador em Havana <span class="creditofoto">Foto António Pedro Ferreira</span>

Luís Faro Ramos, antigo embaixador em Havana Foto António Pedro Ferreira

Sobre as relações diplomáticas entre os dois países, Luís Faro Ramos refere que são “históricas” e já assinalam cem anos, sublinhando que se intensificaram em 2006 após a visita do Presidente da República português, Marcelo Rebelo de Sousa, a Havana. “Cuba é um país que olha de maneira positiva para Portugal e vice-versa. E é bom que esta relação se mantenha assim”, conclui.

No âmbito das comemorações do 100.º aniversário das relações diplomáticas entre Portugal e Cuba será também transmitido na quarta-feira em Havana um testemunho em vídeo de Guilherme d'Oliveira Martins, membro da Fundação Eça de Queiroz, sobre a missão do cônsul português em Cuba. Durante a tarde será ainda apresentada no Teatro Raquel Revuelta a peça “Mise em Abíme” do grupo de teatro cubano D'Dos, que contará também a história de Eça de Queiroz no país, sob a direção de Julio César Rodríguez.