O problema de Vítor Constâncio não foi Berardo, foi o BCP
Vítor Constâncio não se preparou para ir à Comissão de Inquérito parlamentar sobre a Caixa Geral de Depósitos. Muito provavelmente não fez isso por displicência, mas por achar que o Banco de Portugal (BdP) tinha pouco ou nada a ver com os desmandos creditícios do banco público. Tem razão em geral, mas o facto de não ter as respostas bem preparadas - nem os dossiês revisitados ao pormenor - colocaram-no numa posição em que perdeu a razão em pontos chave.
O exemplo mais gritante está ligado ao empréstimo que a CGD concedeu a Joe Berardo. O ex-governador falou no Parlamento como se não tivesse qualquer conhecimento formal do assunto, colocando-o a par de qualquer outro tema de uma “agenda muito preenchida”. Ora, se é absolutamente verdade que o Banco de Portugal não aprova, não reprova nem anula operações de crédito, é igualmente certo que ninguém pode comprar uma posição relevante num banco comercial sem parecer prévio do BdP.
Assim, e para irmos por partes: a) não se pode dizer que Constâncio aprovou o crédito da Caixa a Berardo, pela simples razão de que o BdP não analisa créditos; b) Vítor Constâncio não pode dizer que não sabia nada do assunto porque avaliou a operação que permitia a Joe Berardo ter entre 5 e 10% do BCP; c) essa operação tinha por base um empréstimo da Caixa no valor total da operação, e com as ações compradas no BCP como única garantia; d) concluindo, o BdP não analisou o crédito em concreto, mas estudou e aprovou uma operação que assentava num crédito muito arriscado, tendo conhecimento total da sua natureza.
O problema de Vítor Constâncio não foi Berardo, foi o BCP. Porque foi esse processo de controlo que levou a CDG a emprestar loucuras a vários “empresários”, a promover a transferência direta de dois administradores e a criar um pseudo grupo de acionistas, o chamado Grupo dos Sete, dos quais seis estão hoje falidos!
Posto isto, temos duas consequências óbvias: em primeiro lugar Vítor Constâncio terá que ir novamente ao Parlamento, não porque na minha opinião tenha mentido ou omitido, mas porque não levou a sério a primeira ida; em segundo lugar, vamos poder dissecar o papel do BdP neste processo, o que vai mostrar que Berardo era apenas um elemento num processo muito vasto e que tinha por alvo final o BCP.
Tudo o que se passou nos idos de 2007 não pode ser visto como um empréstimo absurdo a um empresário especulador, apesar disso ser especialmente sumarento. O que Berardo fez - e lhe permitiram fazer - foi tentar ganhar uma fortuna ao controlar o maior banco comercial português, que estava a braços com uma guerra interna pela sucessão de Jardim Gonçalves.
A luta entre o fundador histórico do BCP e o seu delfim - entretanto rejeitado -, Paulo Teixeira Pinto, abriu caminho à maior destruição de valor no nosso sector bancário e, nesse processo, o BdP acabou por ter um papel determinante, com Vítor Constâncio a par de tudo. O BdP vetou o nome dos sucessores mais próximos de Jardim Gonçalves - e provavelmente até tinha razões para o fazer - e conduziu todo o processo que levou à reunião de acionistas suficientes para escolherem Carlos Santos Ferreira como líder do BCP.
Sim, o problema de Vítor Constâncio não foi Berardo, foi o BCP. Porque foi esse processo de controlo que levou a CDG a emprestar loucuras a vários “empresários”, a promover a transferência direta de dois administradores (Carlos Santos Ferreira e Armando Vara) e a criar um pseudo grupo de acionistas, o chamado Grupo dos Sete, dos quais seis estão hoje falidos!
O empréstimo a Berardo foi grave pela sua natureza, mas ainda mais grave pelas razões subjacentes. O especulador foi instrumental na tentativa de recomposição do sistema bancário português, que se veio a revelar ainda um maior desastre. E essa recomposição teve sempre o dedo do BdP, o que está muito bem documentado pelos participantes nesse processo.