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Doping financeiro: como a Gazprom fez batota para financiar o clube de Putin

O FC Zenit de São Petersburgo, o clube favorito do presidente Vladimir Putin, é detido pela empresa estatal Gazprom <span class="creditofoto">Foto ANTON VAGANOV</span>

O FC Zenit de São Petersburgo, o clube favorito do presidente Vladimir Putin, é detido pela empresa estatal Gazprom Foto ANTON VAGANOV

A UEFA escondeu como a Rússia fez doping financeiro com os seus clubes de futebol, numa violação clara das regras de “fair play” financeira. Empresas estatais russas controladas pelo governo de Vladimir Putin gastaram mais de 1500 milhões de euros em quatro equipas de topo, incluindo o Zenit e o Lokomotiv

Texto Craig Shaw, Zeynep Şentek (The Black Sea) e Yann Phillipin (Mediapart)*

Numa manhã fria de novembro em Nyon, na Suíça, na sala Ebbe Schwartz da Casa do Futebol Europeu, sede da UEFA, cerca de duas dúzias de homens estão reunidos para discutir o mercado de futebol da Rússia.

São figuras de primeira linha do Comité de Controlo Financeiro de Clubes (CFCB) da UEFA, da Federação Russa de Futebol, e daquele que é sem dúvida o maior clube da Rússia, a equipa favorita do presidente Putin, o FC Zenit de São Petersburgo.

A reunião foi pedida por Jean-Luc Deheane, ex-primeiro ministro da Bélgica e investigador-chefe da Câmara de Investigação do CFCB da UEFA, que nos últimos meses liderou uma investigação sobre as finanças do Zenit e, em particular, sobre a natureza dos acordos de patrocínio que tem com com a sua empresa proprietária, a Gazprom.

Ao contrário de quase todos os outros clubes que competem no futebol europeu, o Zenit, uma das equipas de maior sucesso na Premier League russa, é propriedade de um gigante financeiro. A Gazprom é a empresa estatal de energia da Rússia e tem receitas anuais de mais de 100 mil milhões de euros. Isso dá ao Zenit acesso a dinheiro quase ilimitado.

Nessa terça-feira de 12 de novembro de 2013, o diretor-geral e os diretores executivo e financeiro do Zenit, acompanhados do seu responsável pelo planeamento estratégico, estão a justificar por que motivo a Gazprom injetou 113 milhões de euros nos cofres do clube em 2012, em clara violação das regras de Fair Play financeiro (FFP) da UEFA. Estes regulamentos impõem limites nos gastos dos clubes, nas suas dívidas e nas ajudas que podem receber dos seus acionistas.

Os argumentos apresentados à UEFA pelo Zenit são simples: na Rússia, a população é pobre e a liga local de futebol não tem a capacidade de gerar as receitas das ligas de outros países europeus. Além disso, a infraestrutura técnica e digital no país é fraca e a pirataria digital abunda sem controlo. A intervenção do Estado é inevitável, garantem os diretores do clube.

“Se os clubes [da primeira liga russa] cumprirem os requisitos do FFP agora”, dizem os homens do Zenit aos investigadores da UEFA, serão forçados a vender os seus melhores jogadores. Isso irá reduzir a “competitividade dos clubes na arena europeia” e os russos começarão a afastar-se do futebol, virando-se para o hóquei no gelo.

O Zenit deixa então um aviso ameaçador: "Todas essas consequências negativas iriam acontecer na véspera do Campeonato do Mundo de 2018", na Rússia.

Sede da UEFA, em Nyon, na Suíça <span class="creditofoto">FOTO SOEREN STACHE /GETTY IMAGES</span>

Sede da UEFA, em Nyon, na Suíça FOTO SOEREN STACHE /GETTY IMAGES

A ameaça de perturbação do Mundial parece ter resultado na UEFA. Seis meses depois, em maio de 2014, a Câmara de Investigação do CFCB resolveu o caso contra o Zenit através de um acordo secreto que permitiu ao clube evitar ser suspenso da Liga dos Campeões.

O tratamento preferencial ao Zenit não ficou por aí. A UEFA escondeu do público qualquer referência que pudesse haver relacionada com a enorme operação de “dopagem financeira” do Zenit com a Gazprom, cuja subsidiária alemã é uma das marcas patrocinadoras da Liga dos Campeões — um torneio da UEFA.

O Zenit não é caso único na Rússia.

Uma investigação do The Black Sea e da rede EIC (European Investigative Collaborations), baseada em novos documentos do Football Leaks partilhados pela revista alemã Der Spiegel, revela que o comité de controlo financeiro da UEFA encobriu esquemas similares no FC Lokomotiv de Moscovo (adversário do FC Porto na Champions) e no Rubin Kazan, clubes também controlados pelo Estado, e reteve informações sobre um terceiro caso, relacionado com o FC Dínamo de Moscovo.

A escala do doping financeiro — um termo usado para descrever as vantagens injustas obtidas por clubes com donos ricos dispostos a gastar dinheiro — está longe de ser pequena. Os documentos analisados pelo The Black Sea mostram que nos últimos cinco anos, desde a introdução das regras de fair play financeiro pela UEFA, o Estado russo distribuiu mais de 1,65 mil milhões de euros pelo Zenit, pelo Lokomotiv e e pelo Dínamo, através de acordos de patrocínio desonestos. E essa prática continua até hoje.

Na sexta-feira passada os órgãos de comunicação social que são parceiros da rede EIC começaram a publicar artigos sobre como a UEFA deu um tratamento preferencial ao Manchester City, ao Paris Saint-Germain e ao Mónaco, escondendo as suas fraudes financeiras multimilionárias. Agora, estas novas revelações, relacionadas com os clubes russos estatais, devem enfurecer ainda mais os fãs e donos de clubes de países da Europa de Leste que foram excluídos das competições da UEFA por infrações, sem dúvida, menos sérias do que essas.

Numa resposta escrita enviada ao EIC, a UEFA afirmou que está “confiante de que quaisquer inconsistências aparentes que possam parecer evidentes para alguns, foram eliminadas, já que o sistema [Fair Play Financeiro] se desenvolveu [entretanto] e se tornou mais familiar para todas as partes”.

Reinvestir em gastos excessivos

Durante anos, equipas como o Chelsea foram criticadas pelos seus rivais por terem comprado a sua ascensão até ao topo do mundo do futebol. Roman Abramovich, o oligarca russo da indústria do alumínio, comprou o Chelsea em 2003 e começou a injetar grandes quantidades de dinheiro no clube para conseguir atrair os melhores jogadores. Em apenas duas temporadas, o clube já estava a ganhar títulos na Premier League inglesa e a competir em grande na Europa.

Depois dos oligarcas, vieram os petro-Estados: os Emirados Árabes Unidos compraram o Manchester City em 2008 e em 2011 o governo do Qatar adquiriu o Paris Saint-Germain. Com isso surgiu uma nova classe de equipas de elite que não precisa de viver dos lucros gerados pelo próprio futebol. Onzes vitoriosos passaram a poder ser construídos do dia para a noite.

Em 2003 o oligarca russo Roman Abramovich comprou o Chelsea, no Reino Unido <span class="creditofoto">FOTO Catherine Ivill / Gerry Images</span>

Em 2003 o oligarca russo Roman Abramovich comprou o Chelsea, no Reino Unido FOTO Catherine Ivill / Gerry Images

O efeito colateral dos gastos desenfreados de Abramovich das recém-chegadas empresas estatais no mundo do futebol foi que as equipas foram forçadas a oferecer salários mais altos e maiores contratos de transferência, provocando uma escalada nos níveis de dívida dos clubes por toda toda a Europa — e que em 2010 já atingia um total de 7,6 mil milhões de dólares.

Introduzidos após a temporada de 2010, os Regulamentos de Licenciamento de Clubes e Fair Play Financeiro da UEFA foram concebidos para refrear esses excessos e tornar o jogo mais competitivo. Os novos requisitos de equilíbrio das contas são de aplicação obrigatória para todos os clubes que se qualifiquem para as lucrativas Liga dos Campeões e Liga Europa da UEFA. Proíbem o atraso no pagamentos de dívidas, impõem tetos para os seus prejuízos anuais e restringem a quantidade de dinheiro que os acionistas podem injetar nos clubes para compensar os défices de orçamento; o limite de défice estipulado para o primeiro ano era de 15 milhões de euros e depois, a partir daí, de 10 milhões de euros por ano.

Para fiscalizar os novos regulamentos, a UEFA criou o Comité de Controlo Financeiro dos Clubes (CFCB) e nomeou para o cargo de chairman deste órgão José Narciso da Cunha Rodrigues, antigo procurador-geral da República em Portugal e ex-juiz do Tribunal de Justiça da União Europeia.

Dentro do CFCB, foi dado poderes a uma Câmara de Investigação, liderada por Jean-Luc Dehaene, para descobrir violações às regras e negociar acordos com os clubes em assuntos menores. Os casos mais graves seriam tratados pela Câmara Adjudicatória, supervisionada por Cunha Rodrigues e onde os clubes poderiam ser sujeitos a multas maiores e a ser excluídos das competições da UEFA.

O doping financeiro no “clube de Putin” foi um dos primeiros testes para o novo CFCB.

O patrocínio da Gazprom

Os casos do Zenit, do Lokomotiv e do Dínamo ocorreram entre os verões de 2013 e 2015. Em junho de 2013, o Zenit, o maior e mais popular clube de futebol da Rússia, entregou à UEFA documentação sobre as suas contas, admitindo perdas de 20 milhões de euros, mais elevadas do que os cinco milhões de euros de “desvio aceitável" — ou seja, de perdas admissíveis — definido pela UEFA.

O Zenit foi salvo por uma cláusula que permite aos proprietários de um clube aumentar o desvio recorrendo a resgates financeiros. Acionando essa cláusula, a perda de 20 milhões de euros do Zenit estava na margem de tolerância. No entanto, os acionistas não podem aumentar as receitas do clube pela porta do cavalo, artificialmente. A UEFA proíbe que os acordos de patrocínio estabelecidos com os proprietários estejam acima do "valor de mercado". Por isso, os investigadores da UEFA ficaram desconfiados quando souberam que os patrocínios do Zenit em 2012 atingiriam uns impressionantes 101 milhões de euros, uma contribuição muito considerável para as receitas globais de 171 milhões de euros do clube naquele ano.

O Zenit não incluiu nessas informações financeiras o facto de a Gazprom estar por trás de quase todo esse dinheiro. Nas contas apresentadas à UEFA, o gigante do sector da energia foi classificado como “Patrocinador Principal 1” e foi associado a um pagamento de 20,8 milhões de euros por serviços de publicidade, além de 28 milhões de euros identificados como uma “doação”. O Zenit registou os restantes 80,4 milhões de euros com um nome igualmente inócuo: “Patrocinador Principal 2”.

Quem era esse misterioso patrocinador principal? A UEFA quis saber e, assim, a 25 de setembro de 2013, sete semanas antes da reunião com o clube na sede da UEFA em Nyon, o investigador-chefe Jean-Luc Deheane enviou uma carta ao Zenit a solicitar cópias do contrato de 20,8 milhões de euros com a Gazprom, e a revelação de “todos os outros patrocinadores e anunciantes” que tinham contribuído para os 80,4 milhões de euros.

A resposta a esse pedido, semanas depois, foi uma prova clara de fraude relativamente ao Fair Play Financeiro. O “Patrocinador Principal 2" do Zenit era, na realidade, um conjunto de oito acordos com subsidiárias e empresas próximas da Gazprom. No topo da lista estava o Gazprombank, o principal acionista do Zenit, que entregou 15,1 milhões de euros ao clube, seguida pela subsidiária alemã, a Gazprom Germania, com 12,1 milhões de euros.

A lista prosseguia: a subsidiária de petróleo da Gazprom forneceu cerca de € 12 milhões; a sua empresa de gás natural contribuiu com 9,4 milhões de euros; o fundo de pensões privado do grupo com 4,38 milhões de euros. Até mesmo a seguradora da Gazprom assinou um patrocínio por 2,39 milhões de euros.

Entre os generosos anunciantes do clube estava a Sibur Holding, um conglomerado petroquímico detido pela Gapzrom até 2012, antes de ser vendido ao empresário mais rico da Rússia, Leonid Mikhelson, e àquele que surge como quarto na lista das maiores fortunas, Gennady Timchenko. A Sibur, que pagou 6,4 milhões de euros ao Zenit, é uma das maiores empresas de processamento de gás da Rússia e mantém boas relações comerciais com a Gazprom. Um dos membros do conselho de administração da Sibur é Kirill Shamalov, ,que até este ano foi genro de Putin.

Este grupo de oito entidades ligadas à Gazprom contribuiu com mais de 64,3 milhões de euros para as supostas “outras” fontes de receita do Zenit, deixando apenas 14 milhões de euros como o valor real pago por partes não relacionadas com a dona do clube. Mas mesmo aí houve truques. A UEFA e o Zenit parecem ter ignorado a presença da Metalloinvest Holding, que, com os seus 9,5 milhões de euros investidos, era de longe o maior dos 54 "outros" anunciantes. O maior acionista da Metalloinvest, na época e agora, é Alisher Usmanov, que vem logo atrás de Timchenko na lista dos multimilionários russos e que é um grande investidor no Arsenal FC, no Reino Unido. Usmanov esteve durante muito tempo à frente da Gazprom Investholdings, até ter renunciado ao cargo em 2014.

Sem qualquer relação com a Gazprom restava apenas uma série de pequenos negócios avaliados em 4,5 milhões de euros; o maior deles um contrato de 750.000 euros com a Nike. A presença da Gazprom Germania em particular é intrigante: por que uma empresa focada na Alemanha patrocinaria um clube russo? O Zenit não respondeu às perguntas que lhe foram enviadas.

O presidente da Gazprom, Alexey Miller, com o presidente russo Vladimir Putin no museu Hermitage em São Petersburgo <span class="creditofoto">FOTO REUTERS</span>

O presidente da Gazprom, Alexey Miller, com o presidente russo Vladimir Putin no museu Hermitage em São Petersburgo FOTO REUTERS

Mesmo descontando o envolvimento de empresas supostamente não relacionadas, como a Metalloinvest, a informação prestada pelo Zenit ao CFCB expôs a extensão do doping financeiro da Gazprom. Cálculos feitos pelo The Black Sea e pelo EIC mostram que o gigante energético esteve por detrás de quase todas as receitas do clube em 2012. Sem a sua generosidade, a faturação do Zenit teria sido 66% mais baixa. Em vez de 171 milhões, apenas 57 milhões.

Tudo isto deveria ter trazido problemas para o clube.

Uma investigação falsa

As provas de que as finanças da Zenit eram uma armadilha já eram claras em outubro de 2013, mas a Câmara de Investigação levou mais quatro meses para abrir uma investigação formal. Quando o fez, a 25 de fevereiro de 2014, o Zenit tinha tentado vários outros truques para ocultar o seu doping à UEFA.

Tudo começou meses antes, quando o clube a Repucom, uma empresa de consultoria australiana especializada em intelligence desportiva, para fazer uma avaliação sobre o valor justo dos negócios com a Gazprom. É normalmente a UEFA que toma a iniciativa de pedir auditorias a consultoras independentes para avaliarem acordos de patrocínio suspeitos — fizeram-no nos casos do Manchester City e do PSG — mas excecionalmente desta vez foi o Zenit que deu o primeiro passo.

Quando o relatório da Repucom foi concluído, em março de 2014, não foi difícil entender por que razão o diretor-geral do Zenit, Maxim Mitrofanov, declarou com tanta confiança numa carta enviada à UEFA, seis meses depois, que na verdade a Gazprom estava a pagar pouco. A 9 de outubro de 2013, Mitrofanov argumentou que a empresa “solicitou e usou regularmente serviços não estavam previstos nos contratos”. Em suma, estava a aproveitar-se do clube.

Esses serviços não incluídos nos contratos que vinham referidos na carta também revelam até que ponto o Zenit e os seus jogadores estão comprometidos com os proprietários do clube. O Zenit permitiu à Gazprom um “conjunto de serviços exclusivos inacessíveis a outros parceiros”, como visitas aos balneários, bilhetes VIP e lugares em jantares e eventos oficiais. Os melhores jogadores do Zenit eram mesmo obrigados a dar os parabéns nos aniversários de administradores da Gazprom, dos seus parceiros comerciais e de membros do governo, bem como a assistir a jogos ao vivo na sua companhia, participar em sessões de fotos e em programas sociais. Tinham ainda de fazer visitas a escritórios para assinarem autógrafos.

Além disso, Mitrofanov informou o comité de controlo da UEFA de que o Zenit estava a participar numa “reforma completa [da primeira liga russa], com vista a promover o crescimento suficiente das receitas geradas”, um projeto que estava ser realizado em “cooperação com a Deloitte e a Repucom”. O clube contratou a Repucom, atualmente detida pela Nielsen, para perguntar se via algum conflito de interesses na sua relação com o Zenit, mas a empresa recusou-se a responder a questões diretas, justificando isso com regras de confidencialidade.

A Repucom recusou-se também a explicar como é que os números de sua avaliação independente do valor justo dos negócios da Gazprom apareceram literalmente nas próximas divulgações financeiras da Zenit, meses antes da conclusão do relatório.

Quando o Zenit forneceu à UEFA uma versão atualizada das suas contas início de 2014, havia efetuado uma série de alterações, incluindo a reformulação dos documentos antes entregues relativos a 2012 para que estes pudessem estar alinhados com o que a Repucom publicaria dentro de algumas semanas. O clube transferiu miraculosamente valores relativos às suas subsidiárias da Gazprom, incluindo a subsidiária na Alemanha, para a sua principal empresa russa. E excluiu ainda os 6,4 milhões de euros da Sibur Limited, a empresa de Leonid Mikhelson (a Sibur não respondeu às nossas questões).

No início de março de 2014, a Repucom finalizou o seu relatório e a Zenit enviou-o à UEFA. A contribuição anual da Gazprom tinha aumentado para 75 milhões de euros. Apesar dessa generosidade, o Zenit continuou no vermelho. O seu novo déficit relativo aos dois anos anteriores era agora de 92 milhões euros. A UEFA declarou assim que o clube estava em violação das regras de fair play.

Penalização, mas sem sair da Champions

Com os seus problemas financeiros agora conhecidos pela UEFA, o Zenit tentou convencer o investigador-chefe interino da Câmara de Investigação, Brian Quinn (que havia substituído Deheane, que ficara entretanto doente), de que poderia manter-se à tona e fornecer um plano de viabilidade económica.

O antigo primeiro-ministro belga Jean-Luc Deheane chefiou a Câmara de Investigação do CFCB da UEFA, antes de ter de ser substituído por motivo de doença <span class="creditofoto">FOTO GETTY IMAGES</span>

O antigo primeiro-ministro belga Jean-Luc Deheane chefiou a Câmara de Investigação do CFCB da UEFA, antes de ter de ser substituído por motivo de doença FOTO GETTY IMAGES

O plano que o clube apresentou era puxado. Seguia o conselho da Repucom mantendo o valor das contribuições de 2012 e 2013 da Gazprom 74 milhões de euros, mas depois aumentou essas contribuições para 90 milhões de euros por ano nos quatro anos seguintes, até 2017. Só assim, justificou o clube, era possível estar em conformidade com as regras financeiras do fair play.

O documento deixa clara a intenção da Gazprom de continuar a financiar o clube. Durante o período abordado de seis anos, as suas contribuições chegariam a 605 milhões de euros — uma violação gritante das regras da UEFA. Mas não o assunto não iria subir à Câmara Adjudicatória do CFCB. E não ia haver exclusão da Liga dos Campeões. Em vez disso, a Câmara de Investigação, cujo relatório final reconhecia estes factos, ofereceu ao clube um acordo: se pagasse uma multa de seis milhões de multa, aplicasse algumas restrições de gastos e se se submetesse a uma monitorização mais apertada nos três anos seguintes, o problema podia ficar resolvido.

Sem surpresa, o Zenit aceitou os termos. A 8 de maio de 2014, o clube e a Câmara de Investigação assinaram o acordo. Em nenhum lugar no site da UEFA ou no próprio acordo, no entanto, é afirmado que o Zenit vai estar a violar as regras do fair play financeiro em centenas de milhões de euros.

Outros clubes pagos pelo Estado

Nos primeiros artigos do novo projeto de investigação Football Leaks, publicados desde sexta-feira, o consórcio EIC trouxe alegações explosivas de que a UEFA concluiu outros acordos secretos com o Manchester City, o PSG e o Mónaco, todos eles envolvidos em esquemas de doping financeiro multimilionários.

Pouco antes do acordo com o Zenit, Brian Quinn renunciou ao cargo de investigador-chefe da UEFA em protesto contra o comportamento questionável da organização. Ele foi substituído por um professor de economia italiano, Umberto Lago. Sob a orientação de Lago, a prática instituída no CFCB de oferecer ramos de oliveira a certos clubes, ao mesmo que pressionava os clubes pequenos para serem castigados, continuou.

Se o Fair Play Financeiro foi pensado para nivelar o campo de jogo, foi um ato falhado. Os milhões injetados de forma injusta nalguns clubes protegem-nos da possibilidade de serem excluídos com base de não estarem a pagar as contas. "O que a UEFA fez com os grandes clubes é imoral", diz Valeriu Iftime, dono do clube romeno Botosani ao consórcio EIC. “Os clubes menores não têm voz, não têm nenhuma hipótese. A parte do futebol que diz respeito aos negócios tem interesse em deixar que os grandes clubes vivam em paz. Nós estamos algures nas margens desse mundo. Eu concordei que o meu clube fosse punido.”

Valeriu Iftime diz que entende que “do ponto de vista das marcas… os grandes clubes devem ser apoiados", mas acrescenta que talvez as equipas mais pequenas, como a dele, “possam também crescer junto com eles". Botosani foi o único clube romeno que não recebeu uma proibição automática dada pela Câmara Adjudicatória, apesar de o investigador-chefe do CFCB ter defendido o contrário.

Se a UEFA sentiu algum constrangimento com o criação de um sistema de dois níveis, ou a duas velocidade, não há sinais disso. Dois meses após a conclusão do acordo com o Zenit, surgiram mais dois casos de doping financeiro em clubes russos: o Lokomotiv de Moscovo e o Dínamo de Moscovo.

Quando a temporada 2013/2014 da liga russa terminou, a 17 de maio de 2014, o Lokomotiv de Moscovo acabou em terceiro lugar, um lugar abaixo do Zenit. As equipas de Moscovo conquistaram duas das três vagas da Rússia na Liga Europa.

Naquele mês de julho, os clubes enviaram as suas contas para a UEFA. Descobertos nas Football Leaks, os documentos mostram que Lokomotiv acumulou lucros de 30 milhões de euros em 2012 e 2013. O Dínamo, no entanto, tinha um défice quase desse tamanho: perdas combinadas de € 37 milhões no mesmo período. Era mau para o Dínamo, mas dentro do desvio aceitável.

Tal como aconteceu com o Zenit no ano anterior, os outros dois clubes também tinham conseguido obter acordos de patrocínio muito lucrativos: o Lokomotiv arrecadou mais de 200 milhões de euros nesses dois anos e o Dínamo não ficou muito atrás, com 180 milhões de euros. Mas, também como no caso do Zenit, a farsa iria desmoronou-se logo. Nos bastidores, tinham sido assinados acordos fraudulentos com as empresas estatais suas proprietárias.

A empresa Ferrovias Russas (RZD), detida diretamente pelo governo, controla 90 por cento das ações do Lokomotiv e é uma das maiores companhias do país, por causa do seu quase monopólio nos serviços de transporte ferroviário. No ano passado, faturou 20 mil milhões de euros. Os restantes 10% do clube são detidos pelo banco estatal VTB Bank, sendo que o VTB foi o acionista maioritário do Dínamo de Moscovo, até ter vendido essa posição por um rublo em dezembro de 2016.

Os documentos da UEFA mostram que o Lokomotiv revelou de bom grado que a RZD era responsável por 94 por cento — 187 milhões de euros — das suas receitas de patrocínio (200,5 milhões). E isso significava que a empresa de transporte garantia 86% do orçamento total do clube nos dois anos anteriores, que tinha sido de 220 milhões. A UEFA soube que a VTB também financiava o Dínamo, com o banco a cobrir 96 por cento dos patrocínios do clube e 85 por cento do seu orçamento de 211 milhões.

Em outubro de 2014, o presidente do CFCB, Cunha Rodrigues, escreveu a ambos os clubes pedindo uma análise dos seus contratos de patrocínio e, mais importante ainda, uma "avaliação do valor justo" para determinar se os contratos estavam ajustados à realidade do mercado. Ao contrário dos casos do PSG e do Manchester City, no entanto, Cunha Rodrigues permitiu que ambas as equipas escolhessem as consultoras que iriam fazer as auditorias. O Lokomotiv optou pela PricewaterhouseCoopers (PwC) e o Dínamo pela Repucom.

O Lokomotiv de Moscovo tinha os acordos de patrocínio com a empresa pública de caminhos de ferro inflacionados em mais de 100%, segundo uma auditoria da PwC <span class="creditofoto">FOTO GETTY IMAGES</span>

O Lokomotiv de Moscovo tinha os acordos de patrocínio com a empresa pública de caminhos de ferro inflacionados em mais de 100%, segundo uma auditoria da PwC FOTO GETTY IMAGES

Os relatórios de auditoria, analisados pelo The Black Sea, não foram ambíguos. Havia doping financeiro em abundância. Os contratos da Ferrovias Russas com o Lokomotiv foram, segundo a PwC, inflacionados em mais de 100%. Os acordos que custavam 187 milhões de euros valiam no máximo 87 milhões. Ainda assim era um valor generoso. A Repucom concluiu no seu relatório que a VTB pagou dez vezes mais do que seria suposto. Os seus acordos assinados por 90 milhões valiam apenas 9 milhões.

Os dois clubes russos pareciam estar em sarilhos, já que a reavaliação das suas contas limpou 155,7 milhões de euros das receitas do Dínamo, criando-lhe um défice de 192 milhões de euros, e retirou 100 milhões de euros às receitas do Lokomotiv. Onde antes havia um lucro saudável para o clube havia agora um buraco no orçamento de 59 milhões de euros.

A 9 de fevereiro de 2014 a UEFA começou a investigar estas violações financeiras em ambos os clubes. E também marcou uma data para uma reunião em Nyon, a 27 de março de 2014, a pouco mais de seis semanas de distância. Enquanto isso, os clubes enviaram, no início de março, relatórios atualizados das suas contas, cobrindo 2014.

O cenário era sombrio para o Dínamo; o seu défice tinha crescido para mais de 302 milhões de euros. Em contrapartida, o Lokomotiv regozijava-se com um novo e miraculoso patrocínio, curiosamente com uma dimensão parecida com o acordo da Ferrovias Russas.

Um confronto na Suíça

O Lokomotiv e o Dínamo foram à sede a UEFA, em Nyon, na mesma sexta-feira de março. O objetivo era, como aconteceu com a audiência do Zenit 18 meses antes, que os clubes discutissem os seus casos com os membros do CFCB e conseguissem evitar a Câmara Adjudicatória e os seus castigos pesados.

O documento de apresentação do Dínamo revelava honestidade sobre a sua dependência em relação ao dinheiro do VTB. O banco representava 96% dos patrocínios do clube, admitia o Dínamo, e sem isso o clube entraria em colapso. De seguida, apresentou uma previsão financeira, afirmando que, para sobreviver, o Dínamo iria precisar que o VTB injetasse pelo menos 90 milhões de euros por ano nos cofres do clube. Isso significava 540 milhões de euros em acordos que mal valiam 40 milhões.

O novo investigador-chefe, Umberto Lago, pressionou para que Câmara Adjudicatória punisse o Dínamo com uma proibição de participar em todas as competições da UEFA por ter um défice próximo dos 300 milhões de euros. A Câmara Adjudicatória seguiu essa recomendação e o clube foi banido por um ano.

Durante o processo, no entanto, a UEFA fez um favor ao Dínamo, aceitando o pedido do clube para ter todos os detalhes dos contratos falsos com o VTB fora do acórdão em que a decisão da Câmara Adjudicatória foi tomada, privando os os rivais russos e europeus do clube de conhecerem como foi montado esquema de doping.

O VTB disse ao EIC que “atualmente não é acionista do FC Dínamo e os seus representantes não fazem parte da direção do FC Dínamo. De momento, existe um acordo de parceria entre o VTB e o Dínamo de Moscovo e acreditamos que este contrato corresponde ao valor de mercado e tem um valor justo, de acordo com os regulamentos da UEFA”.

Com o castigo imposto ao Dínamo, o clube Rubin Kazan conquistou o seu lugar na Liga Europa de 2015/2016. Mas na época também esse clube estava sujeito a um acordo de fair play assinado no ano anterior, quando o CFCB determinou que os donos do clube — o município de Kazan, capital do Tartaristão, um estado federal da Rússia — haviam fornecido 60 milhões de euros em empréstimos duvidosos e em doações que ocultaram enormes prejuízos. Ninguém do Rubin Kazan respondeu às perguntas do The Black Sea, mas parece que o clube não conseguiu satisfazer os termos do acordo com a UEFA, já que foi banido no início deste ano das ligas europeias.

Na reunião que tiveram em Nyon, os representantes do Lokomotiv contaram à UEFA uma história semelhante à do Zenit. O futebol russo era um mercado que estava a crescer, mas ainda numa fase inicial de desenvolvimento; as receitas foram prejudicadas por problemas relacionados com os direitos de transmissão de jogos e com a infra-estrutura digital; e, claro, os russos tinham um “nível inferior de rendimento disponível per capita” em comparação com outros europeus.

Apesar de todos esses problemas, o Lokomotiv gabou-se de ter “resultados financeiros positivos em 2014”, segundo a apresentação que fez, com um “aumento significativo” nas receitas de patrocínio do clube, em resultado de um novo e frutífero acordo de parceria comercial com uma empresa russa, Finresurs.

No intervalo de apenas alguns meses, de março de 2014 até o final desse ano, a Finresurs tinha conseguido gerar uns incrível 95 milhões de euros para o clube; um aumento significativo, comparado com os 41,5 milhões de euros em 2013.

Este novo patrocinador iria reduzir rapidamente as perdas anuais do clube, alinhando-as com as regras da UEFA dentro de um ano ou dois. A Finresurs havia “garantido” ao clube pelo menos 85 milhões de euros de patrocínio por ano ao longo de cinco anos, num total de 521 milhões durante a vigência do contrato.

Havia um problema. As alegações eram fictícias. Os 95 milhões arrecadados pela Finresurs em 2014 vinham inteiramente da Ferrovias Russas. E também o resto de todo os fundos futuros prometidos. A empresa havia sido contratada para atuar como pouco mais do que um "intermediário" para canalizar o dinheiro da companhia pública de caminhos ferros — um papel que provavelmente lhe foi atribuído devido pelo facto de Finresurs ser controlada pela Trinfico, uma companhia que administra o fundo de pensão privado da Ferrovias Russas.

Quando as reuniões de 27 de março terminaram, os dois clubes enfrentaram futuros diferentes. Enquanto Umberto Lago começou a empurrar o Dínamo para a Câmara Adjudicatória e uma suspensão total das competições da UEFA, o investigador-chefe italiano estava a preparar um acordo para o Lokomotiv que ajudaria a resolver a sua fraude financeira.

O Lokomotiv conseguiu não ser suspenso das competições europeias. Em vez disso, levou uma multa de 1,5 milhões de euros <span class="creditofoto">FOTO YURI KOCHETKOV</span>

O Lokomotiv conseguiu não ser suspenso das competições europeias. Em vez disso, levou uma multa de 1,5 milhões de euros FOTO YURI KOCHETKOV

Esse acordo foi assinado a 4 de maio de 2015. O Lokomotiv foi punido com uma multa de 1,5 milhões de euros, acompanhada de algumas restrições à transferência de jogadores. Também iria ser monitorado nos três anos seguintes e prometeu gerar lucros até o final de 2016, um ano e meio depois.

O documento omite qualquer palavra sobre os esforços da Lokomotiv em esconder dinheiro da Ferrovias Russas através da Finresurs, e sobre o seu doping financeiro. Em vez disso, Lago cita o acordo da Finresurs como justificação para o desfecho amigável, alegando, falsamente, que o clube concluiu novos acordos de patrocínio e “apresentou um plano financeiro e de negócios” para vir a estar em conformidade com as regras de fair play em alguns anos.

Mas as provas do Football Leaks revelam que Lago e o CFCB sabiam que os números do Lokomotiv eram o resultado de acordos fraudulentos e inflacionados.

Em 2017, um ano antes do Mundial da Rússia, tanto o Lokomotiv como o Zenit foram dispensados das medidas restritivas impostas na sequência dos acordos que assinaram com a UEFA. Este ano o Zenit classificou-se como o vigésimo terceiro clube mais rico da Europa, segundo a "Deloitte Football Money League”, um ranking dos clubes mais ricos do futebol. Está a facturar 180 milhões em receitas.

Nenhum dos clubes respondeu às perguntas da EIC.

*ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE PELO SITE THE BLACK SEA, NO ÂMBITO DA INVESTIGAÇÃO FOOTBALL LEAKS, DESENVOLVIDA PELO CONSÓRCIO EIC - EUROPEAN INVESTIGATIVE COLLABORATIONS, DE QUE O EXPRESSO FAZ PARTE