Reino Unido
Brexit bem ou mal-passado, aguado, rijo ou nenhum?
Os deputados britânicos têm previstas para esta quarta-feira sete votações indicativas, entre as quais um segundo referendo ou mesmo uma revogação do Brexit, para apurar se há uma que consiga uma maioria de votos e faça sair o processo do impasse
Texto e Fotos PEDRO CORDEIRO, enviado a Londres
Os deputados britânicos receberam esta terça-feira uma má notícia: as férias da Páscoa estão canceladas. Marcadas para o período de 4 a 23 de abril, englobavam o dia 12, visto como provável próximo prazo do Brexit na sequência do Conselho Europeu da semana passada. Os 27 acordaram com Theresa May que a saída da União Europeia (UE) saltava da próxima sexta-feira, 29 de março, para 22 de maio caso a Câmara dos Comuns aprovasse o acordo da primeira-ministra esta semana, 12 de abril caso falhasse. Ora, para já a dirigente conservadora nem planeia levá-lo a votos, pois sabe que chumbaria. Mas há um imbróglio por solucionar, que não se compadece com interrupções nos trabalhos parlamentares, considera Andrea Leadsom, líder da bancada conservadora em Westminster, que anunciou a decisão aos colegas.
O escorregar das datas faz os eurocéticos temer que não haja Brexit. “Ou que aconteça mas tão aguado que não chega a sê-lo”, diz ao Expresso o ativista Keith Williams, à porta do Parlamento. Exibe vários cartazes, um a pedir aos condutores que por ele passam que “buzinem pelo Brexit”, outro a lembrar que “sair significa sair”. Em seu redor outros acusam o ramo legislativo de “traição” e recordam os 17,4 milhões que votaram na opção vencedora no referendo de 23 de junho de 2016.
Segunda-feira o Parlamento decidiu arrebatar as rédeas (com matizes, já lá vamos) do Brexit ao Governo, aprovando por 327 contra 300 votos uma proposta do deputado Oliver Letwin, companheiro de May no Partido Conservador. “É antidemocrático, até porque o Parlamento não está interessado em levar a cabo o Brexit”, acusa Keith. Os deputados testarão várias opções para sair do impasse, em votações indicativas previstas para quarta-feira, para apurar se há uma que reúna uma maioria.
No menu deverão estar, escreve a imprensa britânica, a aprovação do acordo de May (rejeitado duas vezes e que a própria não sente ter apoios suficientes), a saída sem acordo (que o Parlamento também já chumbou), uma versão mais suave do Brexit (ficando o Reino Unido na união aduaneira ou no Espaço Económico Europeu ou mesmo na Associação Europeia de Comércio Livre — onde estão Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein —, o que ajudaria a resolver o problema da fronteira irlandesa mas enfureceria os eurocéticos conservadores), um segundo referendo ou mesmo uma revogação do Brexit.
Nem o rol nem o mecanismo de votação (escolher uma opção? várias? ordená-las por preferência?) estão definidos. O princípio foi apoiado por dezenas de deputados do partido de May, incluindo três secretários de Estado que se demitiram para furar a disciplina partidária. No Conselho de Ministros de hoje não houve consenso sobre se esta deveria ser imposta.
São pelo menos sete variedades de Brexit ou não-Brexit. Tal como as sete ruas que partem da pequena e encantadora praceta de Seven Dials, no centro de Londres, perto da zona onde se concentra o poder político. Olhando para a coluna com sete relógios-de-sol que dá o nome ao lugar, com mostradores circulares azul e números, estrelas e linhas douradas, tem-se quase a impressão de estar a ver uma derivação da bandeira da UE.
“As votações devem ser livres de disciplina”, afirma à porta do Parlamento o deputado conservador Alistair Burt, que renunciou ao cargo de secretário de Estado para o Médio Oriernte e Norte de África, segunda-feira, para votar a favor da iniciativa de Letwin. Juntaram-se-lhe dois colegas, responsáveis pela Saúde Pública e pela Economia. “Ainda que as votações não sejam vinculativas, a primeira-ministra deverá tê-las em conta”, defende Burt. “Não podemos viver permanentemente à beira do precipício!”
O eurocético Keith vai contando os carros que lhe buzinam. Acha tudo isto “tenebroso” mas não culpa os parlamentares, antes May. “Desculpe o que vou dizer, mas a mulher é uma idiota. Uma incompetente. Começou por traçar linhas vermelhas muito duras. Logo a seguir convocou as eleições de 2017, que ninguém pediu e nas quais perdeu a maioria. E logo a seguir pôs-se a negociar um acordo que lixa tudo com os unionistas norte-irlandeses, de quem depende para governar! É inacreditável.”
A primeira-ministra foi clara, há dois anos, na sua interpretação do resultado da consulta popular: era tempo de o Reino Unido sair da UE, mas também do mercado único e da união aduaneira. Pôr fim à livre circulação de pessoas é algo de que May não abdica, mas os 27 retorquem que isso implica acabar também com a livre circulação de bens, serviços e capitais. Com a indivisibilidade do espaço comunitário não se brinca.
Isso, já se sabe, mexe com a fronteira entre as Irlandas, futuramente a única linha terrestre entre o Reino Unido e a UE. A Irlanda do Norte é britânica, a República da Irlanda é independente e membro da UE. Manter a fronteira aberta é prioridade prometida por todos, essencial para a preservação da paz conquistada há apenas 20 anos. Mas as condições prévias da primeira-ministra obrigam a controlos de mercadorias e indivíduos.
Acresce a tal ida às urnas “que ninguém pediu”: as legislativas de 2017, que May convocou depois de um passeio pelas montanhas de Gales, porque as sondagens lhe sorriam e porque, explicou, a oposição parlamentar votava contra o Governo em assuntos cruciais. Uma campanha lúgubre fê-la perder a maioria que herdara de David Cameron e deixou o Executivo conservador dependente do Partido Unionista Democrático (DUP, na sigla inglesa).
Os dez deputados do DUP têm votado repetidas vezes contra o acordo que o Governo conseguiu para sair da UE, sobretudo porque este admite um cenário condicional em que a Irlanda do Norte fica sujeita a regras do mercado único que não obriga o resto do Reino Unido. É o chamado ‘backstop’, ou solução de recurso, que obriga todo país a ficar em união aduaneira com os 27 caso não haja um acordo comercial global que torne a fronteira desnecessária.
Esta terça-feira Sammy Wilson, dirigente do DUP, considerou mesmo, num artigo publicado no eurocético “The Daily Telegraph”, que até um adiamento de um ano era melhor do que o documento proposto por May. Um rude golpe para a governante numa altura em que os radicais anti-UE do seu partido começavam a olhar para o plano da chefe (que até agora sempre chumbaram) como hipótese menos má do que ver o Brexit ir por água abaixo.
Adiar tudo mais um ano — o que exigiria autorização dos 27 — permitiria “ter uma palavra a dizer” no que afeta o Reino Unido (que teria de eleger eurodeputados em maio), argumenta Wilson. “Continuaríamos a ter o direito de decidir sair, unilateralmente, após esse período de um ano.” Bem melhor, pensa o unionista, do que “encerrarmo-nos voluntariamente na prisão do acordo de saída, com a chave da cela no bolso de Michel Barnier”.
“Sair sem acordo é a única forma de a Europa ceder. O facto de o Parlamento apoiar a Europa nas negociações enfraquece o Reino Unido”, afirma o eurocético Keith, agitando os seus cartazes em Westminster. Não teme a votação indicativa, pois não é vinculativa. E duvida que o desfecho seja uma revogação total do Brexit, pois “o Parlamento tem medo”. “Muita gente ficaria zangada, podíamos até ter uma versão dos ‘coletes amarelos’.”
Roger Hopkins discorda por completo. Está a escassos metros de Keith e é um de dois manifestantes pró-UE, face a dezenas de eurocéticos. Tudo em paz. “Temos mais gente ali à frente”, garante ao Expresso. Se o Parlamento cancelar a saída da UE, afirma, “haverá pequenos protestos, como uma marcha prevista para a próxima sexta-feira”, dia inicial do Brexit.
“Tenho alguma esperança nestas votações indicativas”, diz a sua correligionária Gladys Newton. “Estamos num ponto de viragem a favor de ficar.” Não se atreve a fazer previsões, mas vai-se interessando pela vida em Portugal e pergunta o que é preciso fazer para ter cidadania ou direito de residência. “Tenho de comprar uma casa caríssima?”
Que entre os deputados há mais europeístas do que eurocéticos é um facto. Mas alguns sentem-se constrangidos por representarem círculos eleitorais que votaram pela saída. Em todo o caso, os estudos de opinião nacionais não indicam um volte-face desde o referendo. Dão ligeira vantagem à permanência na UE, é certo, mas a mesma (55%, na média dos vários institutos) que nas vésperas da ida às urnas de há três anos, a tal que em o Brexit ganhou. “É impossível dizer o que vai acontecer”, diz Gladys. Não é impossível que o sol do Algarve ou as planícies do Alentejo atraiam esta europeísta que já ouviu falar de “muitos projetos ecológicos” no sul de Portugal. Por enquanto os direitos dos cidadãos do Reino Unido na UE e vice-versa mantêm-se. Há promessas de reciprocidade mesmo em caso de não acordo, mas ninguém sabe ao certo o que sucederia. “Olhe que isto pode ser divertido para quem vê de fora, mas para nós é muito duro”, desabafa a ativista.