É perigoso descer essa ladeira contra o direito de greve
Tinha tudo para ser um processo normal de negociação e tudo correu mal. E, se a gestão da greve cirúrgica dos enfermeiros tem sido um desastre, o problema é que ainda pode piorar.
Começo pela greve em si. A reivindicação de um salário de entrada superior ao dos médicos no SNS é certamente implausível, o que é agravado pela ligeireza da bastonária sobre o assunto, mas não podemos esquecer que entre quem trabalha na enfermagem há um protesto justificado por tanto tempo em que não foi reconhecida a sua licenciatura, em que tinham salários abaixo da regra da Função Pública e em que a sua carreira foi desvalorizada por um mau acordo que o sindicato, num momento infeliz, aceitou subscrever. Este caldo de revolta facilitou uma estratégia de fragmentação sindical, o que se vai tornando um sinal dos novos tempos, e a emergência de dois sindicatos que, não tendo poder de convocação alargada, como se viu esta semana quando apelaram a uma generalização da greve, em que foram ignorados, conseguem apesar disso financiar a greve de pequenos grupos de enfermeiras nas cirurgias através de um polémico crowdfunding. Ora, ao medir a greve pelo número de cirurgias adiadas, esta ação tornou-se intensamente impopular, mas esses sindicatos parecem apreciar o lugar de poder que não imaginavam alcançar e estão à procura de continuar o braço de ferro, resumidos a quanto pior melhor.
O Governo, sabendo tudo isto, podia e devia ter negociado. Tinha com quem, o sindicato mais representativo. Sabia que encontrava quem quisesse falar e encontrar soluções. Mas, por estranhas razões de calendário político ou pela ditadura do Terreiro do Paço sobre as Finanças, escolheu não negociar e o ministro anterior impediu a reformulação da carreira com o reconhecimento do enfermeiro especialista, no que o Governo só cedeu tarde e de má catadura. Tempo perdido e mais azedume. O resultado é que agora é tudo feito à pressa, à força e mal.
Pensar que a legalidade de uma greve pode ser gerida por atos administrativos é errado e constitui uma ladeira descendente contra o direito de greve, que vai assustar os sindicatos, provocar oposição justificada e criar desconfianças profundas
O recurso ao parecer do conselho consultivo da PGR é por isso errado. É uma exibição de autoridade de Estado que se arrisca a ser um fogacho, com custos para todas as partes. Ora, se o Governo esperava agitar um papel, mesmo tão imbuído de digna autoridade como um parecer do conselho da PGR, e com ele vincular o funcionamento dos serviços a uma implacável tutela administrativa, tinha de ter a certeza de que não parecia um balão de ensaio. Arriscar-se a dar ordem para aceitar contra-ordem é que só pode resultar em desordem. Assim, como o Presidente subtilmente lembrou, havendo um recurso pendente num tribunal superior, essa decisão é que será vinculativa. Pensar que a legalidade de uma greve pode ser gerida por atos administrativos é errado e constitui uma ladeira descendente contra o direito de greve, que vai assustar os sindicatos, provocar oposição justificada e criar desconfianças profundas.
Acresce que a argumentação da PGR é uma mistura de razões jurídicas e de interpretações do âmbito do direito de greve, e estas constituem uma limitação inaceitável e constitucionalmente perigosa. Que a greve deva ser delimitada nos tempos e formas no seu pré-aviso é uma exigência normal. No entanto, o conselho consultivo não pode extravasar a sua competência para elaborar a teoria de que a greve é ilícita pela “surpresa que constituiu a forma como ocorreu”, o que é de tal modo genérico que se pode aplicar para contrariar toda e qualquer greve em qualquer momento da nossa vida democrática.
Por outro lado, que o financiamento seja escrutinado, a haver fundo de greve, e é um direito constituí-lo, é também normal. Ora, aqui está, há uma fronteira entre o que a lei deve estabelecer, a obrigação de escrutínio e a proibição de financiamento que não seja por donativos privados identificáveis, e a interpretação do significado social de movimentos de crowdfunding, que fica no âmbito da opinião pública e não da restrição legal. Além do mais, deve merecer denúncia veemente a traição ao sindicalismo que seria a aceitação de pagamentos por entidades patronais, direta ou indiretamente, ou a subordinação de ação sindical a esses interesses. Mas isso não é da tutela da PGR.
Volto por isso ao ponto em que tenho insistido. Em vez de erguer uma barreira administrativa contra a greve e que, mesmo que seja confirmada pelo tribunal, será em condições e por razões distintas das evocadas por este confuso parecer, ou em vez de começar a montar restrições ao direito de greve, que o podem levar para os caminhos da inconstitucionalidade, o Governo devia tratar a questão como ela é: um problema de direitos e reivindicações que se negoceia com sindicatos e um problema de efeitos sobre os utentes do SNS, que se discute na praça pública.
Se me permite um conselho, senhora ministra da saúde, resista aos que lhe dizem que arrasa tudo com um papelucho e uma ordem administrativa, e resolva o problema para estas gerações de enfermeiras e enfermeiros que já são e vão continuar a ser um dos pilares essenciais do SNS que quer valorizar.