Eleições intercalares
Elas estão a mudar a América
© Expresso Impresa Publishing S.A.
É um número inédito e ainda o é mais, ou mais intrigante, quando percebemos que mais de metade delas são democratas. No total, são 260 as mulheres que ainda estão na luta por um lugar no Congresso nas próximas eleições intercalares nos EUA, marcadas para 6 de novembro. Mais mulheres no poder significa que a agenda legislativa da América pode mudar e, num ambiente tão polarizado, há indícios de quem sejam elas as primeiras a procurar consensos juntos dos rivais. Este é o segundo de cinco artigos que estamos a publicar esta semana sobre as intercalares, numa série que fecha na próxima sexta-feira com uma análise de Clara Ferreira Alves
Texto Ana França e Helena Bento
Nunca houve tantas mulheres na corrida ao Congresso norte-americano em toda a história democrática do país. Concorreram 529 nas primárias que elegeram de ambos os lados as democratas e republicanas que vão agora, a 6 de novembro, defrontar-se nas intercalares. Dessas, 260 venceram essa primeira luta e vão agora enfrentar o respetivo ou respetiva oponente. Há 50 anos, apenas 25 mulheres tinham chegado a este ponto da corrida.
Mas a que se deve este aumento brutal e sem precedentes do número de mulheres candidatas? Kira Sanbonmatsu, investigadora do Departamento de Ciência Política na Universidade Rutgers e autora de livros sobre a representação das mulheres na arena política norte-americana, explica ao Expresso que, depois das eleições de 2016, o ativismo das mulheres “começou a criar raízes cada vez mais fortes” e estas mesmas mulheres “começaram a expressar interesse em candidatar-se a cargos políticos”.
Mas houve outros fatores que também contribuíram para isso: Sanbonmatsu nomeia por exemplo os dois anos de presidência de Donald Trump, a Marcha das Mulheres, que reuniu a 21 de janeiro de 2017 milhares nas ruas de Washington D.C. e pelo menos cinco milhões em todo o país e o movimento #MeToo, que começou com uma série de denúncias de abuso sexual por parte de figuras conhecidas como a atriz Ashley Judd ou a cantora Taylor Swift e que serviram de alavanca para que outras tantas mulheres desfiassem e denunciassem outras histórias semelhantes.
“Todos estes acontecimentos chamaram a atenção para uma série de problemas e desafios importantes que as mulheres enfrentam hoje em dia”, assinala Sanbonmatsu, que recentemente editou o livro “A Seat at the Table”, que explora as razões de mais de 80 mulheres do Congresso para terem entrado para a política.
A derrota de Hillary Clinton lavou de muitos rostos democratas o esgar de condescendência com o qual desprezavam Donald Trump e os seus apoiantes - a quem a própria Clinton um dia chamou “o exército de deploráveis”. Mas Donald Trump, sobre quem já na altura pendiam acusações de assédio sexual, acabou mesmo por vencer. Há, porém, um detalhe: Hillary venceu o voto popular - teve quase três milhões de votos a mais que Trump. A semente da revolta - e da esperança - estava plantada na mente de milhões de mulheres que não só se sentiram defraudadas como repararam que havia ainda muita terra que não tinha sido queimada pelas posições pouco conciliatórias de Trump. Havia que pegar em ambas as armas.
Quando aproximamos ainda mais a lente sobre este fenómeno, fica claro que a maioria das mulheres que está a concorrer ao Congresso é democrata. A página de sondagens e análise eleitoral Cook Political Report diz que dos 254 novos candidatos democratas (ou seja, que não estão a defender o lugar mas sim a concorrer pela primeira vez), 50% são mulheres. Do lado republicano são 18%. Para explicar a discrepância dos números, Sanbonmatsu recua no tempo e lembra que, ao longo de várias décadas, o número de republicanas “estagnou”, ao contrário do que aconteceu com as democratas. Este ano, sublinha, mantém-se a mesma tendência, com uma agravante: o “sentimento antiTrump fortíssimo que há entre as democratas”. Nas presidenciais de 2016, 54% das mulheres votaram em Hillary Clinton e 42% em Trump.
Fayrouz Saad já não está na corrida (perdeu as primárias no 11º. distrito do Michigan) mas esteve prestes a tornar-se a primeira mulher muçulmana a legislar no Congresso. A questão da saúde, que continua a ser o foco do seu ativismo já fora de um contexto de campanha, provou-lhe que há muita gente que quer um Congresso mais representativo. “Tudo o que aconteceu no último ano está a mudar a perceção das pessoas, dos homens também. O caso da saúde é ilustrativo. Doze homens entram numa sala e fazem uma nova lei que decide o futuro de 53% do país: as mulheres. Não passou e até as mulheres republicanas se mostraram chocadas”, diz ao Expresso.
Mas o desequilíbrio está também dentro dos próprios partidos. Um terço dos membros do partido democrata é composto por mulheres, enquanto apenas 1/10 da base republicana é constituída por mulheres. O número de mulheres republicanas a concorrer nestas intercalares também aumentou, mas apenas 11%. Por comparação, há 87% mais mulheres democratas a concorrer. Nesta eleição, todos os assentos da Casa dos Representantes estão disponíveis para serem “roubados” por uma cor ou por outra, mas, de facto, só 100 lugares estão a ser realmente disputados - os outros são em distritos “mesmo vermelhos”, ou “mesmo azuis”. A política norte-americana é bastante mais estática do que a europeia: as lealdades partidárias fazem-na menos volátil.
Algumas sondagens mostram que uma maioria de mulheres pensa que Trump prejudica os valores essenciais dos Estados Unidos e confia pouco nele em assuntos como a imigração e os direito das mulheres e das minorias (54% dos homens para 29% das mulheres). Já quanto ao discurso de Trump, 76% consideram que o Presidente apenas diz a verdade às vezes, mas apenas 59% dos homens pensam de igual forma. Mesmo entre os republicanos, Trump não inspira as mulheres: segundo esta sondagem do “Washington Post” com a Schar School, 31% dizem apoiar “bastante” a forma como ele está a conduzir a presidência, enquanto 68% dos homens afirmam o mesmo.
Para Saad, o “fator Trump” foi essencial na decisão de concorrer. É filha de dois libaneses que são, aponta, “a personificação do sonho americano”. Para a democrata, a principal luta neste momento é não deixar que Trump o destrua: “Este presidente está a redefinir o conceito. Agora parece que o sonho americano é só para um grupo específico de pessoas”. A democrata não se considera porém muito diferente de outros norte-americanos que hoje lutam contra algumas das posições adotadas pela administração Trump. E houve um momento em que ela entendeu qual era o seu papel. Trump tinha acabado de assinar o decreto que impedia cidadãos de um grupo específico de países de maioria muçulmana de entrarem no país. “Estava numa reunião sobre este assunto, talvez com mais de cem pessoas, nos subúrbios de Detroit, onde eu concorri, e de repente apercebo-me que estavam ali muitos imigrantes mas metade daquelas pessoas não era muçulmana, talvez muitos nem fossem imigrantes de todo. E ainda assim reuniram-se ali para debater algo que podia nem os afetar. Foi aí que me apercebi que ainda estava na minha América, que aquilo é que é a América, não é aquela que Donald Trump tem tentado vender-nos e do qual pensa ter-se tornado o porta-voz.”
O que é o sonho americano para uns não o é para outros. Para Wendy Rogers, candidata republicana à Câmara dos Representantes pelo 1.º distrito do estado do Arizona, considera que com Donald Trump na liderança do país os cidadãos “têm agora muito mais hipóteses de viver” o tal sonho e de terem uma “economia robusta e sentirem-se mais seguros”. Daí que não a incomode assim tanto a linguagem usada pelo presidente norte-americano para se referir às mulheres, ao lado do qual aparece em várias fotografias, ele de polegar erguido, ela sorrindo, e, como fundo, o recorte de um avião. “Estou focada na missão que tenho em mãos e enquanto antiga oficial do Exército tenho de olhar para os resultados”, justifica.
Os resultados e os números também assinalam a discrepância entre candidatas republicanas e democratas, mas Wendy Rogers, que vai enfrentar o democrata Tom O’Halleran nas eleições de 6 de novembro, desvaloriza isso. Extrai daquilo que observa à sua volta conclusões gerais: “Vejo muitas mulheres republicanas a concorrerem. Só no meu estado, o Partido Republicano tem quatro mulheres que estão a candidatar-se a cargos federais”.
A maioria das candidatas republicanas tem resistido a focar a sua ação na resolução de problemas de uma comunidade específica, sejam os latinos ou os transsexuais, por considerarem que isso diverge a atenção das políticas que podem melhorar não a vida de alguns mas a de todos. Wendy Rogers, que foi uma das primeiras mulheres a pilotar aviões na Força Aérea, como a própria faz questão de referir, incluiu-se nesse grupo e diz que não acha que ser mulher tenha tido qualquer influência na sua forma de fazer política. Diz mais: “As minhas experiências de vida vão muito além do facto de ter nascido mulher”.
A sua campanha para as eleições andou muito à volta de temas como a necessidade de reforçar as fronteiras, evitar que a segurança social definhe, proteger o direito à posse de armas, “as nossas armas”, e limitar os mandatos políticos. A sua grande prioridade é, contudo, os veteranos, que “não estão a ser suficientemente ajudados” e também a imigração. “As nossas leis de imigração são tão defeituosas que há toda uma invasão ilegal de estrangeiros e temos poucas opções para lidar com eles”, refere Rogers, que coloca os EUA vários patamares abaixo de todos aqueles países que “têm leis de imigração robustas”. “Precisamos do mesmo aqui.”
“Há mulheres conservadoras que não se calam sobre o assédio sexual”
Corinna Horst, investigadora do German Marshall Fund para a Cooperação Transatlântica, considera que as republicanas podem ser um arma útil na “normalização política” dos Estados Unidos. “Há uma grande polarização hoje em dia e muita gente está cansada de ouvir falar de ‘igualdade de género’, ‘feminismo’, ‘casas de banho para transgénero’. É um ambiente muito polarizado e acho que é preciso mais mulheres que consigam interagir com os críticos, mesmo os hostis, a este discurso. As republicanas estão maos bem posicionadas neste aspeto porque navegam entre as críticas e o facto de serem mulheres”, diz ao Expresso.
Isto porque, apesar de haver muitas mulheres que querem mais igualdade para “si e para as suas filhas”, que defendem o direito ao aborto e políticas feministas, e “muitas conservadoras que não se calam sobre o assédio sexual”, há toda uma base republicana que “quer as mulheres em casa a cuidar os filhos”.
Como exemplo deste “modelo conciliatório”, Horst oferece Angela Merkel. “Há uma razão para ela ter sido eleita e ser chanceler até agora: optou por uma mensagem de inclusão e não é uma figura ameaçadora, o seu discurso não promove a divisão e não se foca na linguagem feminista e também não a ouvimos muitas vezes a culpar a sociedade por não lhe ter dado oportunidades. Muitas vezes a esquerda opta por esse discurso de vitimização e as conservadoras são um pouco ‘vamos simplesmente fazer isto’”. A investigadora defende que não será para já mas que em 2020 veremos mais republicanas a concorrer e que “pode ser interessante ver se estas mulheres também se tornam inspirações, modelos para outras”.
O que elas trazem à política
O fosso ideológico na América têm-se acentuado nos últimos anos. Um já famoso estudo do Instituto Pew mostra que os democratas estão a virar cada vez mais à esquerda e os republicanos à direita - ainda que menos que os primeiros. E se não houvesse o estudo havia esta eleição que se avizinha, pejada de candidatos apoiados por associações conotadas com a defesa do socialismo, quase um pecado no país que fez do capitalismo uma ciência. E num cenário de polarização, o papel das mulheres pode ser decisivo.
“As nossas entrevistas revelam que as mulheres se consideram mais ‘bipartidárias’ que os homens, que têm uma maior interesse em conseguir resultados, que pensam menos nas suas razões pessoais para estarem na política, nos seus egos, e mais naquilo que podem fazer. Isto diz-nos que as mulheres estão mais abertas a acordos que os seus colegas homens”, afirma Sanbonmatsu. No entanto, explica ainda a investigadora, “é preciso sublinhar que elas vão entrar no Congresso já com ambas as casas muito polarizadas”.
Apesar de garantir que “as mulheres não falam a uma só voz no Congresso”, a investigadora considera que, no geral, “estão particularmente preocupadas no Congresso com as questões que afetam as mulheres em toda a sua diversidade”.
Jineea Butler, candidata republicana pelo 13.º distrito que se apresenta como uma “uma mulher conservadora afro-americana em tempos tumultuosos”, parece encarnar esta abertura, esta união dentro da desunião. Ao Expresso, diz estar muito preocupada com “o discurso” que tem vingado e que está cada vez mais normalizado e com o facto de a política americana ter passado de “competição de ideias” para uma “luta até à morte”. “Esta escalada do tribalismo não é um caminho nem para a paz nem para a prosperidade”, diz. “A liberdade e a igualdade de oportunidades são princípios basilares da fundação do sonho americano. Não são princípios nem democratas nem republicanos. São princípios americanos.”
A candidata republicana, que enfrentará o democrata Adriano Espaillat nas eleições para a Câmara dos Representantes, diz ter apoiado muitos candidatos democratas ao longo da sua vida e que considera “importante” para o Partido Republicano “ter aliados”. “Se nós os abandonarmos, eles vão abandonar-nos.”
É um número inédito e ainda o é mais, ou mais intrigante, quando percebemos que mais de metade delas são democratas. No total, são 260 as mulheres que ainda estão na luta por um lugar no Congresso nas próximas eleições intercalares nos EUA, marcadas para 6 de novembro. Mais mulheres no poder significa que a agenda legislativa da América pode mudar e, num ambiente tão polarizado, há indícios de quem sejam elas as primeiras a procurar consensos juntos dos rivais. Este é o segundo de cinco artigos que estamos a publicar esta semana sobre as intercalares, numa série que fecha na próxima sexta-feira com uma análise de Clara Ferreira Alves