Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Doentes sem acesso a assistência religiosa é cruel. Mas...

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São tantas coisas a acontecer e a deixar de acontecer, tanta normalidade interrompida que interrompe os gestos mais íntimos, que me passam ao lado algumas. Foi um leitor, já há bastantes dias e como tem acontecido com uma frequência horária desde que isto tudo começou, que me alertou. Sabia das regras de limitação de presenças nos funerais, tremendas mas compreensíveis quando se que evitar a todo o custo os ajuntamentos. Sabia da interrupção de todas as cerimónias religiosas, com que a Igreja Católica concordou e na qual colaborou. Não sabia, até esta notícia, que em muitos hospitais se tinha interrompido o acesso dos capelães hospitalares aos doentes infetados. Vou já para a conclusão, que se complica quando vamos mais a fundo: à partida, esta mediada de prevenção é desproporcionada e cruel.

Sabem os leitores que sou ateu. Que defendo uma rigorosa separação entre o Estado e a Igreja. Que considero que a única coisa relacionada com religião que deveria ser aprendida nas escolas é a história das religiões. Que os fiéis têm todo o direito ao proselitismo, ao apoio espiritual e à formação religiosa dos seus filhos desde que o façam à expensas suas ou da sua igreja. Que não compreendo que haja, em pleno século XXI, capelães militares pagos pelo Estado. Que recuso a Concordata, ofensiva do pluralismo religioso. Sou um defensor bastante rigoroso da laicidade do Estado porque acho que só ela pode defender o direito à fé ou à ausência de fé de todos. Coerentemente, sou um feroz defensor da liberdade religiosa dentro dos limites do respeito pela dignidade humana e dos valores constitucionalmente consagrados.

Ser ateu não implica ser insensível à fé dos outros. É, para mim, evidente que o amparo religioso em momentos de doença ou de agonia pode ser, para quem dele precise, tão importante como a própria saúde. Até pessoas que não são crentes o procuram, como um alívio ao sofrimento ou à solidão. Um Estado que não compreenda a sua relevância é um Estado que se dirige a pessoas abstratas, sem as suas próprias necessidades. Qualquer debate sobre o estatuto dos capelães hospitalares, pagos pelo Estado, poderá vir a ser feito depois. De uma forma ou de outra, os crentes em convalescença ou fim de vida continuarão a precisar deste apoio. Ele não é apenas importante para a paz interior do doente. É importante para a sua saúde.

Muitos hospitais estão a vedar o acesso dos capelães hospitalares aos doentes infetados. À partida, é uma medida desproporcionada e cruel. Mas não é apenas ou sobretudo o Estado que impede o acesso. O número de capelães hospitalares não permite que usem as mesmas regras de prevenção do pessoal de saúde

Não há necessidade de acrescentar dor ao que já dói. Teoricamente, os capelães hospitalares e assistentes religiosos têm tantas condições para estar numa unidade de saúde como um médico, um enfermeiro ou qualquer outro técnico. Só que, conversando com um capelão hospitalar para escrever este artigo, acabei por perceber que a questão é mais complicada do que parece, como explica a nota da Coordenação Nacional das Capelanias Hospitalares. Não é o Estado que impede o acesso aos infetados. É o vírus. Infelizmente, o número de capelães hospitalares, um ou menos por hospital, não permite que usem as mesmas regras de prevenção do pessoal de saúde (organização em espelho). E se estiverem num hospital onde haja doentes de covid-19 e outros com outras patologias, não podem acudir aos dois grupos. E se viverem em comunidade, como muitos vivem, menos ainda. Ou seja, os problemas que vemos no pessoal de saúde aqui multiplicam-se por muito até, em muitos cases, serem de resolução impossível.

Elaborados em momento de grande pressão, os planos de contingência da DGS não contemplaram a assistência religiosa e muitas administrações hospitalares não foram sensíveis a esta necessidade. Está na altura de corrigir onde isso possa ser feito. Se não for em nome da liberdade religiosa, que seja em nome da saúde mental, espiritual e por isso física daqueles que queremos proteger. Mas mesmo que o façam, em grande parte dos casos será mesmo o vírus a impedir o acesso aos doentes. Sobra o apoio que estão a dar aos profissionais de saúde (e aos outros doentes, claro). Bem precisam.