Crónica

Crónica

Ana Paula Dias

Puxadores de portas e botões de elevadores desinfetados hora a hora. A experiência de uma portuguesa residente em Macau

No início de janeiro começaram a circular as notícias sobre aquilo que inicialmente se designou como vírus de Wuhan e logo se antecipou que, com a proximidade do ano novo chinês e a imensa movimentação de pessoas associada, o pior estava para vir. Foi de imediato criado o Centro de Coordenação de Contingência do Novo Tipo de Coronavírus e, ao contrário do que acontece habitualmente, já então muitos dos residentes de Macau resolveram não viajar e permanecer no território. Não foi o meu caso, por ter uma viagem há muito planeada; viajei para a Birmânia munida de máscaras e gel desinfetante, assim como todos os asiáticos que fui encontrando pelo caminho. Os vários ocidentais, sobretudo franceses e alemães, com quem me ia cruzando em aeroportos nunca usavam máscara.

Quarentena no regresso de férias

O regresso a Macau no final de janeiro confirmou as previsões: o governo tinha mandado encerrar serviços públicos, casinos, universidades, escolas, centros de explicações, de lazer, cinemas, ginásios, spas. Grande parte do comércio encerrou igualmente. As ligações marítimas com Hong Kong foram suspensas, foi reforçado o controlo das entradas nas fronteiras e no aeroporto, passando a ser necessário preencher uma declaração eletrónica com os dados pessoais e a informação sobre o paradeiro nos catorze dias anteriores. Os trabalhadores não residentes vindos da China continental (cerca de dez mil por dia) tiveram de permanecer catorze dias na cidade vizinha de Zhuhai antes de poderem entrar no território. Variadíssimos voos foram cancelados. Estávamos de quarentena.

O modo como Macau viveu esse período de três semanas foi exemplar; aconselhada a ficar em casa, a população compreendeu que esta era a melhor forma de conter a epidemia num território de pouco mais de 30 quilómetros quadrados e 650 mil habitantes. Houve e há um espírito de coletivismo na cultura asiática que chega a ser tocante – cada um é responsável por todos e proteger-se a si é proteger a comunidade. Durante este período em que não houve praticamente ninguém nas ruas, nas poucas saídas (idas ao supermercado – comprar um produto por dia para ter um pretexto para sair), foi possível observar uma série de pequenas medidas que, no conjunto, terão sido decisivas para que em Macau não tenha havido mais de 12 casos, a maioria já com alta hospitalar, e para que não haja novos infetados há um mês.

Houve e há um espírito de coletivismo na cultura asiática que chega a ser tocante – cada um é responsável por todos e proteger-se a si é proteger a comunidade

Para além do isolamento dos contaminados em centros de quarentena pré-existentes fora das áreas residenciais, e de todos usarem máscaras (oito por residente e por semana, distribuídas nas farmácias mediante apresentação do cartão identificação de residente, pelo preço simbólico de cerca de 1 euro), nos prédios, por exemplo começou a fazer-se de hora a hora a desinfeção com álcool dos puxadores das portas e dos botões dos elevadores e em vários foram afixadas caixas de lenços de papel junto aos ascensores para serem usados para carregar nos botões e deitar fora posteriormente. Os corrimãos das escadas rolantes tiveram o mesmo tratamento. Foram fixados avisos nos imóveis aconselhando o uso de lixivia nas sanitas, já que o vírus também se propaga pelas fezes. Nos hospitais e centros de saúde, para além do preenchimento diário da declaração de saúde eletrónica através de uma aplicação no telemóvel, foi efetuada a medição da temperatura de toda e qualquer pessoa que ali se dirigisse. Houve conferências de imprensa diárias da equipa governativa e dos Serviços de Saúde com a atualização dos dados referentes à epidemia, informações e aconselhamento de medidas a tomar.

Os médicos passaram a usar óculos de proteção, dado que o vírus também se transmite pelas mucosas oculares. Embalagens de gel desinfetante estiveram (e estão) disponíveis para serem usadas pelos utentes em todos os edifícios públicos e em quase todos os particulares e lojas. As aulas dos vários níveis de ensino passaram a ser lecionadas através de plataformas digitais disponibilizadas para o efeito e nas áreas em que tal se proporcionou, os funcionários trabalharam a partir de casa. Simultaneamente foram anunciadas medidas de apoio financeiro para os residentes (isenção das tarifas de água e de eletricidade durante três meses consecutivos a partir de março e vales de consumo no valor aproximado de 300 euros para uso no comércio local) e subsídios para vários setores de atividade.

A desinfeção com álcool dos puxadores das portas e dos botões dos elevadores passou a ser feita de hora a hora. Em vários foram colocadas caixas de lenços de papel junto aos ascensores para serem usados para carregar nos botões e deitar fora posteriormente. Os corrimãos das escadas rolantes tiveram o mesmo tratamento

Entre 21 e 29 de fevereiro tive de me deslocar a Portugal por uma semana. Fiz o percurso Hong Kong-Dubai, Dubai-Lisboa. No aeroporto do Dubai ninguém usava máscara. Eu usei. E a tripulação do voo para Lisboa também não usava. Eu usei. No regresso, no aeroporto de Lisboa, apenas eu e mais três chineses na sala de embarque usávamos máscaras. Olhámo-nos com uma espécie de solidariedade implícita. Atrás de mim, uma pessoa comentava que a médica lhe tinha dito que só se devia usar máscara no caso de se estar doente. E os pelo menos catorze dias em que os sintomas não se manifestam, mas a doença já é contagiosa?

Cheguei a uma Macau em que a partir da terceira semana de fevereiro a maioria dos trabalhadores dos serviços públicos regressou faseadamente ao trabalho (dois dias por semana, em turnos desencontrados), mas professores e alunos continuam a interagir online (previsivelmente até meados, final de abril). Os casinos reabriram, assim como a maioria do comércio. Continuamos todos a usar máscaras (mesmo no trabalho, por imposição mas também por vontade própria), apesar do calor e da comichão que provocam, continuamos a desinfetar as mãos com frequência.

Peso aumenta apesar dos restaurantes estarem vazios

Não frequentamos lugares públicos com a mesma assiduidade, não saímos de Macau nos fins de semana. Nos autocarros que fazem a ligação pela ponte de Hong Kong-Macau-Zhuhai só é permitido um passageiro por assento. A nossa temperatura continua a ser medida diariamente à entrada de instituições governamentais, casinos, nas instalações de trabalho.

Como foi viver esta experiência? Penso que a maioria de nós a viveu sem pânico, mas com responsabilidade. Aproveitamos para ler, ver filmes e séries da Netflix, conversar com os filhos que estão agora em casa, cozinhar, falar à distância mais demoradamente com a família e amigos. Há muitos jantares de pequenos grupos de amigos, e quase todos ganhámos peso. Não sabemos ainda quais as reais consequências do vírus. Têm surgido casos em que pacientes declarados curados voltam a apresentar sintomas de infeção. Outros em que os sintomas só se manifestam muito para além dos catorze dias inicialmente apontados. Têm surgido inclusive notícias de que o vírus pode atacar o sistema nervoso central. Não é, por isso, um assunto para encarar de ânimo leve nem para aguardar por “cenários”. É preciso antecipar cenários e estar um passo à frente do vírus. Em Macau tal como no continente chinês, passado este capital de experiência, nada será como dantes. E no resto do mundo, como vai ser?

*Doutorada em Educação e Interculturalidade