REBELDES E RESISTENTES - XI
A grande revolta contra os impostos em Minas Gerais e o degredo de muitos dos queixosos para África
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REBELDES E RESISTENTES - XI
A grande revolta contra os impostos em Minas Gerais e o degredo de muitos dos queixosos para África
Há quase 300 anos já os povos se revoltavam contra a fiscalidade e a cobrança de impostos. No Brasil, os “furores sertanejos” em 1736 juntaram “toda a casta de gente” para recusar, pelas armas, o pagamento de um novo imposto. Organizaram-se saques e manifestações, mas o protesto foi fortemente reprimido pelas autoridades, que deportaram inúmeros revoltosos para África
Texto Ana Paula Medicci com Joana Beleza Ilustração João Carlos Santos
Os chamados “furores sertanejos” ocorreram entre março e setembro de 1736 nos sertões dos rios das Velhas e São Francisco, na região norte da capitania de Minas Gerais, no Brasil. Foi um período marcado por conflitos armados, pestes e fomes. Os “motins do São Francisco”, como foram chamados na época, explodiram quando membros de diversos grupos sociais - fazendeiros e criadores, senhores de escravos, forros, mamelucos e livres não proprietários - se voltaram contra o novo método de arrecadação dos Quintos Reais, os impostos que recaíam sobre a exploração aurífera na capitania das Minas Gerais e se designavam capitação.
A nova taxa passava a incidir sobre a propriedade escrava e sobre os forros, antigos escravos. Ou seja, além das pessoas envolvidas na extração aurífera, passava-se a tributar também grande parte da população local que se dedicava apenas à criação de gado e à agricultura de abastecimento das áreas mineradoras.
A imposição da capitação gerou muitos protestos. Não houve um projeto único de revolta, mas destacam-se duas grandes linhas de movimentação: uma mais radical, sem plano definido além da promoção de saques do património individual, e outra menos radical, que elaborava manifestos para impedir a ação do oficial responsável pela cobrança, o intendente André Moreira de Carvalho. Ameaças e ações violentas contra esta e demais autoridades locais e contra proprietários que não haviam aderido ao movimento explodiram entre os meses de março e setembro de 1736.
Os primeiros furores aconteceram em março contra o ouvidor (juiz da comarca) que foi expulso da região de Capela das Almas, na barra do Rio das Velhas, acusado de tentar impor o novo tributo. Em maio, o intendente nomeado pela Coroa para proceder à cobrança foi cercado em Montes Claros, sendo ameaçado de morte. Dirigiu-se ao Arraial de São Romão, onde enfrentou a invasão de cerca de 200 homens. A partir daí, iniciaram-se os protestos mais violentos seguidos da destruição de engenhos e fazendas e da invasão de diversas vilas.
Região onde ocorreram os furores sertanejos de 1736. “Demonstração dos afluentes do rio São Francisco, em Minas Gerais” Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
Entre os líderes do movimento havia gente de estratos sociais diversos, desde grandes fazendeiros, como foi o caso de Pedro Cardoso, eleito procurador do povo no auto-governo rebelde instituído em maio, até homens mais simples, tais como o mameluco Simeão Correa, nomeado general de armas. Parte dos revoltosos lançou um manifesto, no qual se convocava “toda a casta de gente” (brancos, mulatos e mulatas, negras e negros forros) a defenderem pelas armas a que não se pagasse o quinto, já que dos sertões não se retirava ouro e para que, a custa de sangue se preciso fosse, se pudessem defender de “tão grande tributo”.
Foi mesmo um movimento de gente de toda a cor e casta, tais como a senhora viúva e também fazendeira Maria da Cruz, mãe de Pedro Cardoso, e o vigário Antonio Mendes Santiago, aos quais se atribuiu a autoria de um interessante “Padre nosso dos moradores das minas gerais, [...] minas do inferno, minas de todo o delírio...”, que circulou durante a revolta.
O protesto foi duramente reprimido pelo governador Martinho de Mendonça de Pina e de Proença, auxiliado pela tropa dos Dragões de Minas, por capitães do mato e por grupos de proprietários fiéis ao governo. Os líderes da revolta foram denunciados e presos durante os dois anos seguintes. Os seus bens foram confiscados, e os revoltosos levados a ferros para o Rio de Janeiro e sentenciados com penas de degredo para África. Anos depois, em 1739, Maria da Cruz receberia o perdão real, mas continuou com o património confiscado. Voltou depois aos sertões de Minas Gerais, onde terminou os seus dias longe do filho e de outros implicados, degredados em Moçambique.
O artigo sobre Minas Gerais é o décimo primeiro de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
A autora deste artigo é Ana Paula Medicci, da Universidade Federal da Bahia.
Há quase 300 anos já os povos se revoltavam contra a fiscalidade e a cobrança de impostos. No Brasil, os “furores sertanejos” em 1736 juntaram “toda a casta de gente” para recusar, pelas armas, o pagamento de um novo imposto. Organizaram-se saques e manifestações, mas o protesto foi fortemente reprimido pelas autoridades, que deportaram inúmeros revoltosos para África