Rebeldes e resistentes - X
Sri Lanka. A resistência valente dos soldados nativos contra o domínio português
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Rebeldes e resistentes - X
Sri Lanka. A resistência valente dos soldados nativos contra o domínio português
Os portugueses tentaram, mas nunca conseguiram, conquistar a ilha de Ceilão, apetecida pelos seus recursos económicos e valor geoestratégico. Durante meio século as tropas de ambos os lados viveram em conflito permanente, com alguns momentos de verdadeiro terror, como aquele em que a cabeça de um capitão português, Constantino de Sá, foi pendurada numa árvore em sinal de vitória da elite indígena
Texto Graça Almeida Borges e José Vicente Serrão, com Joana Beleza Ilustração João Carlos Santos
Foi no início do século XVI que os portugueses se estabeleceram em Ceilão, atual Sri Lanka. O território estava dividido em três reinos principais: Jaffna, no norte; Kandy, no centro; e Kotte, na costa ocidental. Após tomarem posse da coroa de Kotte, em 1597, os portugueses ensaiaram um projeto de conquista, territorialização e domínio colonial de toda a ilha, projeto que, pela sua extensão, mas também pela violência e resistência que a ele andaram associadas, não teve paralelo no resto do império português do oriente.
Nas áreas que iam controlando, os portugueses seguiram uma política conservadora de reconhecimento dos direitos indígenas, de acomodação e fusão entre as instituições portuguesas e as nativas, e de aliciamento das elites locais, das quais dependiam para o exercício do seu domínio. Ao mesmo tempo, desenvolveram iniciativas políticas e militares com vista à absorção dos outros dois reinos – Jaffna seria derrotado em 1619, mas Kandy nunca foi incorporado.
Isto significa que, até ao final da sua presença em Ceilão, em 1658, os portugueses viveram num estado de conflito permanente, tanto com os reinos e as populações locais como com os holandeses da Companhia Holandesa das Índias Orientais, entretanto chegados.
É neste contexto que devemos situar as ações de resistência ao projeto colonial português. Nelas se incluem várias rebeliões e revoltas armadas, protagonizadas sobretudo por aqueles naturais que serviam a administração portuguesa, desde os lascarins (soldados nativos), passando pelos seus capitães de guerra (modeliares) e chegando até aos governadores provinciais (dissavas), que, não raro, mudavam de campo segundo as oportunidades e as conveniências.
Essa era, afinal, uma das principais fragilidades ou contradições intrínsecas do projeto português para Ceilão: não poder dispensar a colaboração da força militar e das elites indígenas e, ao mesmo tempo, estar sujeito à sua volatilidade e imprevisibilidade.
Lascarins de Ceilão, ilustração anónima, Códice Casanatense, século XVI in “Album di disegni, illustranti usi e costumi dei popoli d'Asia e d'Africa con brevi dichiarazioni in lingua portoghese”, Biblioteca Casanatense, Roma
Foi o que aconteceu na história que aqui se passa a contar. Corria o mês de agosto de 1630 quando o então capitão-geral, Constantino de Sá, decidiu armar uma poderosa expedição militar para atacar o reino de Kandy, nas montanhas. Fiado na sua autoridade e popularidade, o capitão-geral não previu que os chefes militares nativos que o acompanhavam desertassem logo no início da batalha para o campo inimigo, levando consigo os cerca de 20 mil soldados lascarins que integravam a expedição.
Esta revolta culminou com o “desbarate” do exército português e com a morte do próprio Constantino de Sá, ao que se seguiu a destruição de várias fortalezas e outras tantas igrejas que simbolizavam a presença portuguesa na ilha. A cabeça do capitão-geral, diz-se, foi levada ao rei de Kandy e espetada numa árvore como símbolo da vitória, juntamente com as cabeças de muitos outros portugueses.
Relatos de cronistas da época atribuem inequivocamente esta revolta não só à traição de quatro modeliares – Dom Teodósio, Dom Cosme, Dom Aleixo e Dom Baltasar, indivíduos que devem o seu nome cristão à conversão ao cristianismo, que utilizavam para ganhar a confiança dos colonizadores – como, principalmente, à ação dos milhares de lascarins, motivados tanto pelos laços culturais e familiares que os ligavam às comunidades locais, como pelos constantes abusos sofridos às mãos dos portugueses.
Aliás, a repreensão destes abusos é recorrente na correspondência enviada pela coroa e pelo governo do Estado da Índia para as autoridades portuguesas em Ceilão, pois era sabido que todos os levantamentos da ilha se deviam aos grandes “vexames” a que os naturais eram submetidos. É por isso que as frequentes revoltas com que as populações locais responderam a estas violências, expressão de uma estratégia de sobrevivência e de resistência contra o domínio português, são hoje apontadas como uma das principais razões para o fracasso da conquista portuguesa de Ceilão.
O artigo sobre a resistência no Sri Lanka é o décimo de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
Os autores do artigo, Graça Almeida Borges, da Universidade de Évora, e José Vicente Serrão, são do ISCTE-IUL.
Os portugueses tentaram, mas nunca conseguiram, conquistar a ilha de Ceilão, apetecida pelos seus recursos económicos e valor geoestratégico. Durante meio século as tropas de ambos os lados viveram em conflito permanente, com alguns momentos de verdadeiro terror, como aquele em que a cabeça de um capitão português, Constantino de Sá, foi pendurada numa árvore em sinal de vitória da elite indígena