REBELDES E RESISTENTES - IX
Sargadelos. A revolta que destruiu a fábrica mais moderna da Galiza
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REBELDES E RESISTENTES - IX
Sargadelos. A revolta que destruiu a fábrica mais moderna da Galiza
No fim do século XVIII um motim de milhares de pessoas destruiu a fábrica mais importante do norte da Galiza. Com um plano bem articulado, o ataque envolveu cerca de 4 mil pessoas, entre homens, mulheres e até crianças. Uma morreu, várias ficaram feridas, e os danos económicos foram enormes para a região
Texto Ofelia Rey Castelao com Joana Beleza ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS
O alvo da rebelião foi a fábrica de fundição de ferro do empresário Dom Raymundo Ibáñez, construída poucos anos antes em Santiago de Sargadelos, uma paróquia rural situada no norte da Galiza. O levantamento aconteceu a 30 de abril de 1798 e foi talvez o mais importante de todos os que tiveram lugar na Galiza neste período, não só pelo número de amotinados, como pelas consequências do sucedido.
O alvoroço aconteceu pelas mãos dos camponeses das freguesias situadas em torno de Sargadelos que, desde 1794, eram obrigados por Raymundo Ibáñez a transportar nos seus carros o carvão para a fundição. Tinham de fazer cerca de 25 transportes por ano, o que resultava numa carga de trabalho excessiva e numa grande perda de tempo. As viagens até eram pagas, mas eram-no com atrasos e, muitas vezes, por um valor menor do que aquele acordado. Ao rol de queixas, acrescia ainda a desmatação que Ibáñez fazia de todos os montes e arvoredos da comarca para obter o carvão necessário para os fornos de fundição.
Raymundo Ibáñez, retratado por Goya, Baltimore Museum of Art
Apesar da autorização do rei e dos acordos com alguns dos habitantes para o fazer, começou logo a abusar dos privilégios reais e a apropriar-se dos bens comunitários em benefício dos seus interesses privados. Tais abusos provocaram graves alterações nos usos tradicionais que a população fazia deste espaço comunal, necessário para o cultivo, para o pasto do gado, para conseguir casca de carvalho para tingir o couro e as redes, e para obter madeira para lenha e para a construção de casas, móveis, barris e outros artigos indispensáveis ao dia a dia destas gentes. Por todas estas razões, o descontentamento era generalizado.
Quando a fúria dos revoltosos atingiu a fábrica, os trinta soldados destacados pela Coroa para a proteger foram incapazes de a salvar. Enquanto acusavam Ibáñez de ser um tirano, os camponeses destruíram as casas, a capela e o arquivo. A violência utilizada foi surpreendente, mas mais surpreendente ainda foi a boa organização da investida, o segredo em que esteve envolvida e a capacidade de mobilização popular.
Para tal terão contribuído os instigadores da revolta: proprietários e fidalgos locais que ocupavam cargos senhoriais e que se viam prejudicados pelo tempo de trabalho dos camponeses e pelo uso dos transportes que a atividade da fábrica lhes roubava; e os párocos da comarca que também se sentiam prejudicados na cobrança dos seus impostos pelo poder de Ibáñez. Surpreendente também foi a passividade das autoridades galegas perante a convulsão gerada, não procurando evitar a revolta ou solucionar os problemas que a motivaram.
Domado o motim, 839 pessoas foram processadas, num processo judicial que terminou, em 1802, com um acordo assinado entre as partes que obrigava os lavradores rebelados a cobrir parcialmente as perdas económicas. Os proprietários, fidalgos e párocos, passaram igualmente pela prisão, mas acabaram também por chegar a acordos. O motim, esse, destruiu a fábrica mais inovadora e importante que houve na Galiza nos finais do século XVIII, deixando simultaneamente um rasto de forte tensão social.
Dom Raymundo Ibáñez viria a falecer poucos anos depois, em 1809, mas ficaria conhecido como um nobre industrial espanhol que introduziu na Europa inovações tecnológicas através das suas fábricas de ferro e cerâmica.
O artigo sobre o motim de Sargadelos é o nono de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
A autora deste artigo é Ofelia Rey Castelao, da Universidade de Santiago de Compostela
No fim do século XVIII um motim de milhares de pessoas destruiu a fábrica mais importante do norte da Galiza. Com um plano bem articulado, o ataque envolveu cerca de 4 mil pessoas, entre homens, mulheres e até crianças. Uma morreu, várias ficaram feridas, e os danos económicos foram enormes para a região