REBELDES E RESISTENTES - VII
Mulheres em luta. Em 1717 as empregadas africanas de Lisboa saíram à rua e a Rainha deu-lhes razão
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REBELDES E RESISTENTES - VII
Mulheres em luta. Em 1717 as empregadas africanas de Lisboa saíram à rua e a Rainha deu-lhes razão
Uma manifestação pública, uma petição, uma reunião com membros do poder e uma vitória efetiva. Podíamos estar a falar do século XXI, mas tudo isto aconteceu no século XVIII. Um grupo de negras, muitas delas escravas, foram para as ruas protestar contra o pagamento de um tributo sobre os seus rendimentos. Assinaram ainda uma petição, foram ouvidas pela Rainha e esta acabou por lhes dar razão. Assim reza a história sobre um ativismo raro e inusitado nas ruas de Lisboa há mais de trezentos anos
Texto Cacey B. Farnsworth e Pedro Cardim com Joana Beleza Ilustração João Carlos Santos
No começo de maio de 1717, as ruas de Lisboa foram palco de um protesto pouco habitual, protagonizado por mulheres de origem africana, boa parte delas a trabalhar na limpeza das ruas e nas casas de famílias com mais posses, provavelmente gente nobre e grandes mercadores.
O protesto foi desencadeado pela decisão da câmara de Lisboa de impor a essas mulheres negras o pagamento do tributo da sisa sobre os seus rendimentos. Boa parte dessas mulheres seriam escravizadas, mas haveria também, decerto, muitas com o estatuto de “liberta” e, ainda, várias mulheres livres. Algumas dessas mulheres negras reuniram-se numa zona da cidade e fizeram soar o seu desagrado, gritando contra o tributo que tinha sido imposto pela câmara. O seu descontentamento alastrou e as demais mulheres negras acabaram por abandonar os seus lugares de trabalho, juntando-se às que estavam a protestar.
Um dos fidalgos que costumava empregar algumas dessas mulheres era o vedor da rainha, nobre cuja função se assemelhava à de um contabilista, que controlava as despesas e receitas da casa real. Ao saber da situação, decidiu ajudá-las e encorajou-as a escrever duas petições, uma para a rainha Maria Ana de Áustria, casada com D. João V, e a outra para o infante D. Francisco Xavier. Para além de interceder pelas mulheres negras, esse fidalgo ajudou-as a escrever as petições e conseguiu agendar uma audiência com a rainha, na qual, para além dele próprio, participariam três mulheres afrodescendentes, escolhidas “entre as que melhor falassem”.
A audiência teve mesmo lugar e essas três mulheres tiveram a singular oportunidade de expor as suas queixas aos dois membros da família real, que se solidarizaram com elas, acabando por sugerir à câmara a revogação da sua medida fiscal. Os camaristas, no entanto, não alteraram a sua posição. Tal levou as mulheres a voltar à carga: foram novamente recebidas pela rainha e, desta vez, obtiveram uma ordem régia que obrigava a câmara a suprimir a sisa, “agora e para sempre”.
Ao saberem da notícia, muitas das mulheres negras de Lisboa não esconderam o seu contentamento e saíram à rua em “magotes”, soltando gritos de alegria, gritando “vitória” e “fazendo das capas bandeiras”. No entanto, essas manifestações de júbilo geraram tensão entre os oficiais camarários, registando-se vários confrontos. Além disso, alegando que esses “magotes” eram motins, os oficiais incumbidos da segurança das ruas chegaram mesmo a prender algumas dessas mulheres na cadeia do Tronco.
Temos notícia desta revolta graças a um certo Salvador António Ferreira, autor de um documento que hoje se encontra na Biblioteca Pública Municipal do Porto. As citações contidas neste texto provêm desse documento. Acreditando naquilo que é contado por Salvador Ferreira, este episódio de resistência é relevante porque revela a capacidade das mulheres, e ainda por cima afrodescendentes, para protestar e para lutar pelos seus direitos numa época caracterizada por uma ordem social patriarcal na qual imperava a discriminação racial e étnica, e confirma a importância dos intermediários - neste caso o anónimo fidalgo - para empoderar essas mulheres.
Estes factos mostram que a situação dessas mulheres melhorou ligeiramente como consequência da sua iniciativa e da sua luta. Contudo, importa sublinhar que o desenlace teria sido provavelmente outro caso o fidalgo não tivesse intercedido por elas. É ainda significativo que hoje tenhamos conhecimento deste episódio de protesto das mulheres negras de Lisboa não porque o relato tenha sido escrito por uma delas, mas porque foi descrito por Salvador Ferreira. E esta constatação alerta-nos para a fraca representatividade dos arquivos acerca destas formas de resistência, e para a possibilidade de protestos como este terem sido mais numerosos do que pensamos hoje.
O artigo sobre os protestos das mulheres africanas é o sétimo de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.
Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.
Os autores deste artigo são Cacey B. Farnsworth, da Universidade da Florida, e Pedro Cardim, da NOVA FCSH/CHAM.
Uma manifestação pública, uma petição, uma reunião com membros do poder e uma vitória efetiva. Podíamos estar a falar do século XXI, mas tudo isto aconteceu no século XVIII. Um grupo de negras, muitas delas escravas, foram para as ruas protestar contra o pagamento de um tributo sobre os seus rendimentos. Assinaram ainda uma petição, foram ouvidas pela Rainha e esta acabou por lhes dar razão. Assim reza a história sobre um ativismo raro e inusitado nas ruas de Lisboa há mais de trezentos anos