REBELDES E RESISTENTES - IV

Cipriano Catriel. O chefe índio que usava a língua como arma de resistência

Entre os chefes políticos dos índios americanos era normal fingir que não se dominava a língua dos brancos, para dessa forma fortalecer a identidade indígena. Assim procediam nos parlamentos ou noutras reuniões, o que simbolizava uma clara estratégia de resistência através do uso exclusivo do idioma materno. Assim aconteceu com Cipriano Catriel, o Dez Águias, conhecido por ser um negociador brilhante, que fingia não dominar o espanhol nos seus encontros com brancos

TEXTO SUSANA E. AGUIRRE, COM JOANA BELEZA ILUSTRAÇÃO JOÃO CARLOS SANTOS

Quando o médico e geógrafo francês Henry Armaignac conheceu pessoalmente o cacique Cipriano Catriel, líder dos indígenas das pampas argentinas conhecidos como catrieleros, não pôde esconder a sua surpresa. Ao chegar ao acampamento nas proximidades de Azul, cidade situada a pouco mais de trezentos quilómetros de Buenos Aires, Armaignac descobriu que o líder pampa vivia num rancho sem móveis, vestia-se como um gaúcho e usava uma bomba de prata para tomar mate, a bebida característica do sul da América do Sul, com origem nas culturas indígenas daquela região.

Fotografia de Cipriano Catriel

Fotografia de Cipriano Catriel

Cipriano, cujo nome indígena era Mar Ñandú (Dez Águias), nasceu em 1837 e era o terceiro dos filhos de Juan Catriel “Segundo”, o que constituía uma posição que não lhe permitia herdar o cargo do pai. No entanto, graças aos seus dotes de negociador astuto e diplomático, Cipriano serviu como cacique a partir de 1867.

O encontro com o médico francês foi realizado na presença de Santiago Avendaño, secretário, intérprete e amigo de Cipriano, ex-prisioneiro dos índios e conhecedor da língua nativa, por cujos esforços, sem dúvida, o estrangeiro foi autorizado a visitar a tribo. Nessa visita também esteve presente uma das três mulheres de Cipriano, que permaneceu em silêncio preparando o mate.

Durante a conversa entre Cipirano Catriel e o francês Henry Armaignac, o intérprete Santiago demonstrou a sua habilidade para traduzir a um e a outro o que era dito, na língua correspondente, pelo que o visitante concluiu que o cacique não falava espanhol. A reunião decorreu sem sobressaltos, num clima de cordialidade, em que os presentes se sentiram muito à vontade.

Concluída a reunião, o líder pampa fez sinais ao francês para sair do rancho sem ser observado. Tendo percorrido a prudente distância de cerca de trezentos metros até um ribeiro, e sem a presença de testemunhas, Cipriano conversou com Armaignac num espanhol perfeito. Perguntou ao visitante sobre o desenvolvimento da guerra franco-prussiana na Europa, as táticas empregadas e o número de combatentes.

O francês ficou tão desconcertado que deixou o momento documentado: “Diante de todos o cacique fingia ignorar o espanhol e, ainda que falasse essa língua sem tropeços, fazia traduzir as minhas respostas para o idioma pampa quando Avendaño ou alguma outra pessoa estavam presentes.”

Esta história levanta-nos a pergunta sobre quais seriam as razões pelas quais o cacique dissimulava diante da sua própria gente o domínio da língua espanhola, optando por utilizar um intérprete. A verdade é que esta dissimulação constituía um comportamento ritual usual nos encontros formais ou protocolares com os “outros” que não eram indígenas. Assim se procedia nos parlamentos ou em outras reuniões que tinham essas características, sendo uma clara estratégia de resistência disfarçada, que visava fortalecer a identidade indígena frente aos brancos, através do uso exclusivo do idioma materno.

Com efeito, o acesso à informação era crucial para que o cacique Cipriano pudesse mover-se internamente, junto dos seus seguidores, e externamente, nas suas relações com o Estado. Daí que o conhecimento do espanhol era uma vantagem que permitia, entre outras coisas, ler os jornais e estar a par das notícias e planos do governo, especialmente em questões que pudessem afetar os interesses indígenas.

Mas a história dos catrieleros das pampas foi complicada. Se por um lado tiveram uma história não linear como “índios amigos” (grupos de indígenas que assinaram a paz com o governo, receberam terras e viviam no interior da fronteira), aproveitando certos contextos sociais e políticos que lhes eram favoráveis, também promoveram várias revoltas contra o poder instituído.

E foi essa posição negocial ambivalente que ditou o seu destino. Devido à sua participação a favor de uma revolução falhada liderada por Bartolomé Mitre contra Nicolás Avellaneda, que pouco antes tinha sido eleito presidente da Nação Argentina, a liderança de Cipriano Catriel acabou tragicamente, em 1874. Foi trespassado por uma lança e assassinado pelos seus seguidores, junto com o seu intérprete e amigo Santiago Avendaño.

O artigo sobre Cipriano Catriel é o quarto de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social.

Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.

A autora deste artigo é Susana E. Aguirre, do Centro de História Argentina e Americana da Universidad Nacional de La Plata, na Argentina