Rebeldes e Resistentes - I

Duarte Fernandes. O resistente anónimo executado aos 40 anos pela Inquisição

Acusado de ser sacerdote numa comunidade de escravos e mouriscos que eram muçulmanos em segredo, Duarte Fernandes terá dito que “fizessem dele o que quisessem, que não havia de dizer mentiras”. Tinha cerca de 40 anos, e foi executado numa praça de Lisboa em 1555. Este é o primeiro de uma série de doze artigos sobre rebeldes e resistentes do século XVI ao XIX. Uma parceria da Universidade de Évora com a Casa da América Latina e o Expresso, para ler todas as sextas-feiras

Texto Maria Filomena Lopes de Barros, com Joana Beleza Ilustração João Carlos Santos

A 14 de outubro de 1553, um indivíduo de origem marroquina, Duarte Fernandes, foi aprisionado no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. O seu processo decorreu durante perto de ano e meio, até 3 de março de 1555, quando foi executado no auto de fé - o ritual de penitência pública de hereges e apóstatas durante a Inquisição - realizado na Ribeira de Lisboa, cumprindo-se uma sentença de excomunhão maior.

O réu, com cerca de 40 anos, foi acusado de ser caciz, ou seja uma autoridade religiosa entre uma comunidade de muçulmanos escravos e mouriscos cripto-islâmicos, que atuaria na estrebaria do rei, na Mouraria de Lisboa. Era também denominado Cide Abdela, numa dualidade para a Inquisição, por si só denunciadora da sua verdadeira adscrição religiosa.

Os factos mais pormenorizados da acusação focaram-se no casamento do seu filho, realizado quatro ou cinco anos antes, que teria sido efetuado ao modo dos mouros, com a degolação de um carneiro e os demais trâmites processuais acompanhados por orações e procedimentos imputados como islâmicos.

O principal denunciante foi um mourisco chamado António Correia, que se apresentou voluntariamente ao Santo Ofício para prestar declarações, e que acabaria por se suicidar no decorrer deste processo. Segundo os inquisidores, tal ato teria sido consequência da perseguição que lhe teria sido movida depois desta denúncia ao Tribunal.

Auto de Fé em Lisboa, in Joseph Lavallée, Historia Completa das Inquisições de Italia, Hespanha, e Portugal, 1821

Auto de Fé em Lisboa, in Joseph Lavallée, Historia Completa das Inquisições de Italia, Hespanha, e Portugal, 1821

A atitude de Duarte Fernandes ao longo do processo foi variável. Numa primeira fase, revelou a sua conformidade ao que intuiu serem os objetivos dos inquisidores, confessando a sua pretensa apostasia. Mas um elemento de resistência esteve sempre presente no seu discurso: por um lado, em duas assinaturas em árabe, num desafio concreto à própria língua hegemónica; por outro, nos silêncios a que muitas vezes se remeteu, negando-se a continuar a responder aos inquisidores. E por fim, na sua reserva absoluta quanto a denunciar quaisquer nomes, referindo apenas quatro, no total, nenhum dos quais por comportamentos incriminatórios.

Estes dois últimos aspetos serão uma constante nas fases posteriores por que transitou: a de hesitação, em que contradisse as afirmações anteriores, pediu mais tempo para responder às perguntas, chorou e afirmou não se recordar de mais nada, e, finalmente, a de resistência ativa. Os dois últimos interrogatórios (respetivamente em julho e setembro de 1554) foram marcados por essa consciente reação, num discurso em que prevaleceram os reiterados vocábulos de “verdade” e de “morte” na assunção do seu cristianismo pleno.

“Fizessem dele o que quisessem, que não havia de dizer mentiras para não morrer”, terá dito Duarte Fernandes. De facto, alguns dias antes do seu penúltimo interrogatório, em julho de 1554, uma testemunha afirmou tê-lo ouvido dizer a outro prisioneiro que não sairia vivo do cárcere inquisitorial.

A sua tomada de posição é, pois, conscientemente assumida na integral admissão da sua “verdade” que contrapôs à dos inquisidores, explicitamente aceitando as consequências de tal ato. O previsível desfecho, concretizado no auto de fé de 3 de março de 1555, cabalmente traduziu a resposta inquisitorial a este processo de resistência ativa e à sua total erradicação.

O artigo sobre Duarte Fernandes é o primeiro de uma série de 12 biografias de resistentes, que pretende chamar a atenção do grande público para personagens, ou grupos de pessoas, cujos combates num passado remoto são pouco conhecidos. E, no entanto, as resistências que estas pessoas “sem voz” fizeram ao longo da História são fundamentais para compreendermos os processos de transformação social. Estes artigos enquadram-se num projeto de investigação europeu intitulado “RESISTANCE, Rebeliões e resistência no Impérios Ibéricos, séculos XVI-1850”, coordenado por Mafalda Soares da Cunha no CIDEHUS, Universidade de Évora, e conta com a parceria da Casa da América Latina e do Expresso.

A autora deste artigo é Maria Filomena Lopes de Barros, do Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora