Aniversário

Três lições de Amália e um fado

<span class="creditofoto">Foto d.r.</span>

Foto d.r.

Passaram vinte anos desde que Amália Rodrigues morreu. Ainda vamos a tempo de aprender o que nos quis ensinar

Texto Miguel Cadete

Uma coisa é a música, da outra trata o artista

Pode ser uma luta inglória, mas vale a pena distinguir entre a música e o artista. Amália Rodrigues cuidou disso mesmo desde bem cedo, ainda que só depois tenha sido possível entendê-la. Tal como Elvis Presley e Frank Sinatra. Serviu-se, claro, dos melhores compositores. Frederico Valério, maltratado por certa hagiografia amaliana, foi o único português a compor canções para a Broadway. Foi também o maior responsável pelos primeiros grandes êxitos de Amália. “Ai Mouraria”, “Fado Amália”, “Fado Ciúme”, “Sabe-se Lá”, “Só À Noitinha”, “Não Sei Porque Te Foste Embora”, “Que Deus Me Perdoe”, “Confesso”, “A Minha Canção é Saudade” e “Eu Disse-te Adeus” são alguns dos exemplos paradigmáticos de Amália no seu melhor: a Amália dos violinos cor de rosa e orquestração magnânima, ou então, violentamente melodramática, com a música a pedir que o mundo se ajoelhasse. Todo o mundo.

Mas Amália não era Frederico Valério. Como não era Alain Oulman, que foi capaz de a transportar, ainda antes do ressurgimento dos anos 80, rumo ao coração de uma intelectualidade que até aos anos 60 andava mais do que desconfiada. E mesmo assim, e mesmo depois.

Alain Oulman (à esquerda) com Amália

Alain Oulman (à esquerda) com Amália

Não sei quais os trechos que a maioria das pessoas prefere, provavelmente cada um terá os seus favoritos. Mas as “óperas” de Oulman, como eram classificadas no circuito restrito do fado, nunca poderão ser consideradas menos populares do que as de Valério. Só a heresia populista poderá considerar “Gaivota”, “Maria Lisboa”, “Abandono”, “Meu amigo Está Longe”, o álbum chamado “Busto” e a obra-prima “Com Que Voz” como canções ou álbuns dispostos a agradar aos maus restritos núcleos da cultura, aqueles em que ela canta os grande poetas.

Amália não fica menor por cantar Linhares de Barbosa, nem maior por ter gravado Camões, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, David Mourão-Ferreira ou Luiz Macedo. A paixão era deles mas foi Amália quem a tornou sua e a publicitou como ninguém nunca havia feito.

Capa da obra prima “Com que Voz”

Capa da obra prima “Com que Voz”

Serviu-se de Valério e de Oulman tal como se serviu de Frederico de Freitas ou de Carlos Paião, de quem gravou o “Senhor Extraterrestre”. A artista era ela e quem transportava aquela paixão não era mais ninguém.

O fado é o fado e Amália é Amália

Segue como corolário que Amália não pertencia ao fado. Muito provavelmente nem sequer era da música. Daí que a escolha do seu reportório possa ser um quebra-cabeças impossível de solucionar para qualquer mortal. Vai um malhão ou um vira? Uma canção brasileira ou outra francesa? Um fado tradicional, daqueles catalogados e classificados como bichinhos pelos radicais, ou um fado escrito para teatro de revista? Se há toque de génio na discografia de Amália esse é a discricionariedade na decisão de optar por esta ou aquela cantiga. Em disco ou em concerto.

O fado é só uma sombra

O fado é só uma sombra

Claro que existem os discos “conceptuais”, é obvio que há álbuns dedicados a um só compositor, torna-se evidente que existem coleções de canções amealhadas para um álbum que são daquela época e só daquele tempo. Mas visto daqui, não resta outra coisa senão perceber que a sua – como dizer? – intuição era soberba para saber o que fazer aqui e agora, neste lugar e acolá. Fica confirmado que odiava a clausura em compositores, letristas, géneros ou línguas. Repito-me: Amália era Amália.

O palco é a vida

Posto isto, torna-se óbvio que o seu habitat natural era o palco. Não era na rádio, nos discos, nas fotografias das revistas ou sequer na televisão que a sua arte podia florescer. A ideia de morrer em palco, que transmitiu em várias ocasiões, podia ser apenas uma blague, mas tinha um claro fundo de verdade. Só em cena Amália poderia ser a artista completa. Pelo hieratismo, pelo folclore, pela “mise en scéne”, e tudo o mais. Contemos com os xailes negros, os brincos, os “obrigados”, o alinhamento dos números, a dinâmica do concerto, a classe dos músicos que a acompanhavam, a capacidade das canções de tornarem aquele momento o único momento.

Só em cena Amália poderia ser a artista completa

Só em cena Amália poderia ser a artista completa

Podemos dar as voltas que quisermos até cairmos no cliché: era uma questão de vida ou de morte. A esse respeito, os fãs mais fundamentalistas – tantas vezes criticados senão mesmo menosprezados – sabiam o que estavam a presenciar. O que interessava não era voz perfeita que gravou o álbum “Busto”, não era também a “gaieté” dos seus anos de Hollywood, ou a melancolia dos fados menores mais duros. Era ela, ali, em palco. Um disco menos bom de Amália ao vivo seria sempre pior do que a memória de todos os que guardavam a ideia daquela atuação. E tudo isto só é curioso porque hoje funcionaria na perfeição. A indústria do disco passou por uma crise que transtornou o aparecimento de novo talento durante os primeiros 15 anos deste século. Os downloads ilegais, o streaming, a pulverização dos géneros musicais, as novas formas de consumo… Estou certo que Amália passaria incólume por tudo isto.

O mundo como lugar

Vem isto também a propósito da morte, aqui há meses, de João Gilberto. Tal como Amália, João não seria o mais prolífero compositor. Ou o maior animal de palco. Ou o showman capaz de utilizar toda a pirotecnia e parafernália à disposição no seu tempo para provocar a maior impacto em cada espectador. João Gilberto era um enorme intérprete. No fim da sua carreira, num dos últimos álbuns que gravou em estúdio, João Gilberto teve como produtor Caetano Veloso. O reportório desse disco não trata senão da regravação de grandes êxitos e outras canções memoráveis da sua carreira. Agora, à luz de Caetano: só com voz e violão, mas com a ideia firme de que João Gilberto não necessitava de nada mais. O minimalismo como a arma mais potente para provocar sensações.

Amália Rodrigues é, ainda hoje, o cartão de visita da música popular portuguesa

Amália Rodrigues é, ainda hoje, o cartão de visita da música popular portuguesa

A essa lição de Gilberto e Caetano há que juntar, todavia, uma outra que teimamos esquecer. Se Amália Rodrigues é, ainda hoje, o cartão de visita da música popular portuguesa, nunca ela aspirou a um fulgor de internacionalização como aquele que bafejou Gilberto. Quando a classe média alta do Rio de Janeiro engendrou a bossa nova, sabia bem o que estava a fazer. E a tomada do mercado norte-americano, ainda hoje o maior do mundo no que à música diz respeito, nunca teve igual em Portugal.

Ao contrário de muitos que enchem a boca com a palavra internacionalização, Amália foi realmente a artista portuguesa mais internacional, por conta de tudo isto que foi dito atrás e porque a sua popularidade não se ficava pelos países com grandes colónias de portugueses. Além do Olympia, havia Itália, Líbano, Brasil, e tantos outros lugares que percorreu ao longo de uma carreira que teve tal alarde que, certa vez, ao entrevistar Elvis Costello, fiquei surpreendido pelo conhecimento que detinha sobre a obra da cantora de “Povo Que Lavas no Rio”. Ele dizia que, tal como os Beatles de Liverpool, a sua música pertencia ao Atlântico.

Amália foi realmente a artista portuguesa mais internacional

Amália foi realmente a artista portuguesa mais internacional

Esse era, porém, o tempo do Portugal fechadinho, sem profissionalismo na indústria da música, e milagres como o da bossa nova nunca poderiam vir a suceder. Até hoje, esse será provavelmente o grande fado da música portuguesa, incapaz de repetir a façanha do Brasil, mas também da Jamaica ou de outros pequenos países, que um dia foram capazes de impor a sua música “lá fora”. O défice, só para esclarecer, não é tão devido ao Estado como à iniciativa privada, mas numa idade em que o castelhano progride como a segunda língua nos Estados Unidos da América, a menoridade fica cada vez mais à mostra.

Não porque o tempo seja de reggaeton ou de outra sonoridade qualquer da moda. Mas porque para lá dos esforços avulsos de António Zambujo e Carminho, apoiados pelos seus amigos brasileiros, nada mais existe com a ambição de tornar universal o cantar português, como um dia os Madredeus tentaram para mais tarde, também eles, soçobrarem. Também aí, Amália saiu vencedora. E ensina.

Como em tudo, ela foi sempre sozinha. E fez. Mas agora já não nos chega o voluntarismo.