NUCLEAR

O que não se aprendeu com Chernobyl

Entrada da base militar de Nyonoksa na região de Arkhangelsk<span class="creditofoto"> Foto Sergei Yakovlev/Reuters</span>

Entrada da base militar de Nyonoksa na região de Arkhangelsk Foto Sergei Yakovlev/Reuters

Dois dos médicos que assistiram as vítimas da explosão de há duas semanas numa base militar russa revelaram que não lhes foi fornecida qualquer proteção. As pessoas expostas à radiação libertada e as que com elas contactaram desconheciam a perigosidade, desvalorizada por Moscovo. A informação escassa e contraditória faz eco de Chernobyl, um desastre que continua bem inscrito na memória de muitos

Texto HÉLDER GOMES

Maria Brock tinha cinco anos quando soube do acidente no reator número 4 da central nuclear de Chernobyl. Vivia com a mãe em Leipzig, na Alemanha de Leste. “Foi a primeira notícia que me recordo de ter visto. Lembro-me da imagem do reator destruído. A minha mãe deve ter-me explicado que era grave mas sem conseguir perceber bem como e porquê”, relata ao Expresso a atual investigadora e especialista em assuntos soviéticos da Universidade de Cardiff, no País de Gales.

A série "Chernobyl" da HBO reavivara este ano a memória do pior desastre nuclear da história, ocorrido a 26 de abril de 1986, mas o fantasma está de volta após uma explosão, no passado dia 8 de agosto, numa base militar na região de Arkhangelsk, no noroeste da Rússia. A rememoração deve-se não apenas ao medo sempre presente do nuclear, mas também à escassa informação que as autoridades disponibilizaram. Segundo dados oficiais, cinco engenheiros nucleares morreram e seis outras pessoas ficaram feridas. O Presidente da Rússia, Vladimir Putin, disse que o teste estava relacionado com o desenvolvimento de um novo sistema de armas.

Uma semana depois, o serviço meteorológico Rosgidromet revelou que os níveis de radiação estavam 16 vezes acima do normal em Severodvinsk, uma cidade a menos de 50 quilómetros da localidade de Nyonoksa, onde terá ocorrido a explosão. Mas, de acordo com o Kremlin, a radiação emitida não foi suficientemente forte para provocar problemas de saúde. Especialistas na Rússia e no Ocidente acreditam que o teste estará relacionado com o novo míssil de cruzeiro que a NATO batizou como “Skyfall”. No ano passado, Putin anunciou que a nova tecnologia daria ao míssil um alcance “ilimitado”.

MÉDICOS TRATARAM VÍTIMAS SEM PROTEÇÃO

As informações contraditórias – e reveladas a conta-gotas – são agora contrariadas por dois dos médicos que trataram pacientes expostos à radiação e que falaram à BBC sob a condição de anonimato. Os profissionais de saúde contaram à emissora britânica que não usaram proteção e receiam ter sido contaminados. Pelo menos 90 pessoas estiveram em contacto com as vítimas mas as autoridades não as alertaram para qualquer risco de contaminação nuclear, revelaram.

Os três pacientes transportados para o hospital regional em que trabalham estavam muito doentes, asseguram. Primeiro, foram examinados no serviço de urgência e depois encaminhados para a cirurgia. Durante cerca de uma hora, as urgências continuaram a admitir pacientes até que se percebeu que os três doentes assistidos tinham sido expostos “a uma dose de radiação muito alta”. Apesar disso, o pessoal médico continuou a tratar as vítimas. A equipa viu-se obrigada a improvisar algum tipo de autoproteção, tendo usado, por exemplo, máscaras do kit de emergência dos socorristas dos helicópteros.

Posteriormente, uma outra equipa procedeu a um trabalho de descontaminação no hospital. As roupas das vítimas e as macas foram descartadas. “O nosso pessoal da limpeza devia ter sido avisado. Apanharam sacos e pacotes e levaram-nos para fora do hospital”, descreveram os dois médicos, que decidiram falar agora, duas semanas depois do acidente, por temerem pela própria saúde e para evitar “violações de segurança” semelhantes.

A Organização do Tratado de Proibição Completa dos Ensaios Nucleares, fundada em 1997 e com sede em Viena, apontou falhas técnicas em dois outros locais, além do foco da explosão. A organização internacional criou uma animação, que disponibilizou no Twitter, mostrando o alcance potencial da radiação.

O Kremlin reagiu, dizendo que a organização não tem nada a ver com os testes russos e que a revelação de informações sobre a radiação é voluntária. Entretanto, duas das estações de monitorização voltaram a funcionar.

“ATOMKRAFT? NEIN, DANKE!”

Em 2019 como em 1986, a investigadora Maria Brock deteta, numa análise retrospetiva, o mesmo tipo de drible informativo das autoridades – outrora soviéticas, agora russas. Uma analogia que sai reforçada com a série recente da HBO sobre Chernobyl. “Muitos amigos russos também a viram e isso provoca ainda mais medo nas pessoas”, diz. Há 33 anos, “muita gente soube do que se passou através da rádio Voz da América”. “Falava-se de crianças alemãs e suecas que tinham ido para a escola sob uma nuvem radioativa mortífera ou algo do género”, recorda.

A central nuclear de Chernobyl em maio de 1986, após o desastre <span class="creditofoto">Foto Laski Diffusion/Getty Images</span>

A central nuclear de Chernobyl em maio de 1986, após o desastre Foto Laski Diffusion/Getty Images

Na altura, Maria tinha um colega chamado Mischa, que no dia do desastre estava com o padrasto na Rússia. “O padrasto foi pescar e voltou completamente queimado, o que nunca tinha acontecido antes nem voltou a acontecer”, lembra. Quanto às explicações da mãe, a académica percebeu mais tarde que ela estaria a acompanhar as notícias da Alemanha Ocidental: “Aposto que foi assim que se informou mais detalhadamente porque os órgãos oficiais da Alemanha de Leste não falavam muito no assunto.”

“Penso que as pessoas no bloco ocidental têm memórias mais vívidas”, prossegue, concretizando: “Por um lado, porque havia menos notícias no bloco de leste e as que chegavam vinham filtradas e, por outro, porque havia uma espécie de movimento antinuclear muito ativo no lado ocidental... "Atomkraft? Nein, danke!" [Energia nuclear? Não, obrigado!] era o mote.” “Até em muitos livros infantis se abordava os receios de uma guerra nuclear”, remata.