Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A nostalgia da pureza

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Há uns tempos, Ramalho Eanes disse que “a corrupção é uma epidemia que grassa na sociedade portuguesa”. A frase é eficaz na boca do seu autor, com um percurso eticamente imaculado. Mas é bom recordar que foi Eanes quem nomeou o engavetador-geral Cunha Rodrigues para procurador-geral da República. Porque era convicção da altura que a jovem democracia não aguentaria uma Justiça excessivamente rigorosa. Por isso, nunca soubemos ao certo o que aconteceu em Camarate e o livro de Rui Mateus morreu nos armazéns. No tempo em que Eanes era o mais alto magistrado da nação, a epidemia ia do guichê das Finanças ao topo da política. Mas a ausência de recursos judiciais e mediáticos tornava tudo mais opaco.

Em “Democracia em Vertigem”, disponível na Netflix, a documentarista Petra Costa narra um diálogo entre um político e um empresário na tomada de posse de Michel Temer: “Você por aqui?”, pergunta o político; “Eu estou sempre aqui, vocês, os políticos, é que mudam”, responde o empresário. A ilusão da epidemia de corrupção, em Portugal, no Brasil e em quase todo o lado, resulta de uma melhoria: ela vê-se. Mas a promiscuidade entre dinheiro e política, em que o primeiro dá ordens à segunda, nunca de cá saiu. Os poderes de sempre continuam, como se viu durante décadas da família Espírito Santo. Os políticos é que mudam.

Ao longe, o poder parecia respeitável, inteligente, culto, temível, com autoridade moral. Já o poder dessacralizado por democracias fortemente mediatizadas é visivelmente corrupto, evidentemente fraco, vulgarmente trapalhão. Impuro. E é isso que nos deprime

A opacidade que se vivia no tempo de Ramalho Eanes não resultava de qualquer hipocrisia. Era com distância que o poder se exercia. Dizíamos que era “gravitas”. Ao longe, o poder parecia respeitável, inteligente, culto, temível, com autoridade moral. Já o poder dessacralizado por democracias fortemente mediatizadas é visivelmente corrupto, evidentemente fraco, vulgarmente trapalhão. Impuro. E é isso que nos deprime. Faz-nos falta o mistério. E este desencanto, como o das crianças que descobrem a pequenez de tudo o que lhes parecia enorme, está a criar uma profunda descrença numa democracia que se tornou demasiado próxima. Ela suicida-se na overdose de visibilidade que a vulgariza. E é por isso que todos os heróis que procuramos surgem com a patine perdida do passado: opacos, distantes, independentes do nosso voto. Os magistrados escondem-se no mistério da burocracia e das leis, limpos de todas as impurezas do poder “secular”. Não dependem da democracia, onde a porca ambição se exibe, se escrutina e se faz eleger.

Mas este tempo é como é: tudo o que se transforma num mito acaba por exibir o seu rosto e vulgarizar-se, dececionando. Sérgio Moro fez-se herói nos corredores dos tribunais. Mas precisava de palco porque não há outro lugar para se ser herói nestes tempos. E o palco foi a política, onde acabam todos os regeneradores. Foi para ministro e viu as suas indecentes mensagens exibidas. Carlos Alexandre não resistiu à vaidade, deu umas entrevistas para a televisão e revelou os seus ódios e as suas dívidas. Baltazar Garzon foi apanhado em contramão, Di Pietro atirou-se de cabeça para o pântano da política italiana. Todos acabaram por despir as togas, revelando-se corruptos, frágeis, vaidosos, vingativos. E assim morre o sonho infantil de voltarmos a ser liderados por homens tão perfeitos como os nossos pais nos parecem quando somos crianças.

Quando se oferecem para purificar o sistema, os purificadores conspurcam-se. Porque a impureza que os enoja vem da visibilidade quotidiana do exercício do poder. Da pequenez dos homens que sustentam a grandeza aparente do poder. A esta transparência que as democracias modernas nos oferecem, chama Ramalho Eanes de “epidemia”. Como se as manchas na pele do rosto fossem elas próprias a doença. E, no entanto, a doença esteve sempre lá. Chama-se humanidade.