Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Prédio Coutinho: demolir, mas não por gosto

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Estão a ser demolidas casas na Quinta da Lage, na Amadora. São mais de 190 famílias que ficam sem tetos, algumas sem qualquer alternativa. E enfrentam isto perante uma autarquia que se baseia, nas suas decisões, num programa que não conta com novos agregados familiares desde 2003. A Quinta da Lage, que tem uma associação de moradores bastante ativa e que tem tentado resistir ao autismo da autarquia, que nem perdeu tempo a falar com eles (quanto mais negociar), mereceu apenas algumas notícias na imprensa e breves referências na televisão. Nem diretos, nem editoriais, nem debates televisivos. Nada que se compare com a novela do Prédio Coutinho, em Viana do Castelo. Porque os moradores da Quinta da Lage são pobres e os dramas dos pobres que não tenham uma grande dimensão coletiva só são notícia quando se transformam em crime.

A demolição do Prédio Coutinho foi decidida legalmente pelo poder eleito, com recurso às indemnizações estipuladas na lei e em decisões confirmadas por tribunais independentes. Pode ser uma decisão errada, mas não é, à partida, arbitrária. Não é a mesma coisa. O problema também não é o direito do poder político tomar decisões deste género. Fá-lo em nome do povo que o elegeu e tendo cumprindo as regras. Em políticas urbanas o coletivo impõe-se ao individual, o interesse público impõe-se a direitos adquiridos. Se assim não fosse, as expropriações seriam impossíveis e pouco o nada teria evoluído nas nossas cidades e até fora delas.

O meu problema, para além das formas expeditas que a autarquia arranjou para pôr um ponto final à resistência dos moradores, é a origem da decisão. Parece que a questão é estética. O povo de Viana não gosta de prédios altos naquela zona. Preferia um mercado, como existia antes. E quando a decisão é estética eu torço o nariz.

Em politicas urbanas o coletivo impõe-se ao individual, o interesse público impõe-se a direitos adquiridos. Mas o interesse comum não é o gosto e a moda

Pego noutro exemplo: há uma novela judicial que dura há anos em Lisboa, mais precisamente na Praça das Flores, que tão bem conheço. Três associações de defesa do património recorreram ao tribunal para impedir a demolição de um prédio naquela praça. Já com o prédio demolido, um juiz veio dar razão às associações, tentando travar a construção do novo edifício. Já houve mais recursos e perdi o fio à meada. Mas o que me interessa é mesmo a decisão deste magistrado. A autarquia não foi acusada de atentar contra o PDM ou ter demolido património protegido. A decisão baseou-se nesta afirmação: o novo edifício não se enquadra na praça para a qual está projetado. Não estando a falar de volumetria ou qualquer outro critério objetivo, o magistrado faz uma apreciação estética. Que especialista consultou o juiz para escrever isto? Nenhum. Qual a formação do juiz nesta matéria? Presumo que nenhuma. Saberá de história de arte? De arquitetura? Será um olissipólogo? Neste caso, era para avaliar um prédio que até tem a assinatura de Souto Moura. Mas poderia ser sobre qualquer outro. O que moveu o magistrado foi o seu gosto e o gosto médio dos vizinhos. E isto sim, é arbitrariedade.

As cidades têm, como nós, as marcas do tempo. O que inclui as marcas do gosto de cada tempo. Até do mau-gosto. E até do que hoje achamos mau-gosto e amanhã voltaremos a achar que é excelente. Aceito que uma câmara demula um prédio por estar em causa um bem comum. Desde que cumpra a lei, não o faça ao serviço de outros interesses privados, dê as indemnizações justas e, no processo, tenha o comportamento que se espera do poder político num Estado democrático, este tipo de decisões são inevitáveis. Mas o interesse comum não é o gosto e a moda. Tem de corresponder a valores mais relevantes do que os direitos privados que são postos em causa.