EUA

Biden “enferrujado”, Harris em ascensão e Sanders “a guinar à esquerda”: o balanço de dois debates sobrelotados

Kamala Harris demonstrou possuir um “talento político natural”, segundo a análise de um especialista americano em relações públicas ouvido pelo Expresso <span class="creditofoto">Foto Carlo Allegri / Reuters</span>

Kamala Harris demonstrou possuir um “talento político natural”, segundo a análise de um especialista americano em relações públicas ouvido pelo Expresso Foto Carlo Allegri / Reuters

A senadora Kamala Harris foi a estrela do segundo debate para apurar o candidato democrata que defrontará o atual Presidente dos EUA nas eleições de 2020. “Harris derrotou dois homens na casa dos 70 anos, Trump pode facilmente ser o terceiro”, avalia um analista. Foram 20 candidatos em duas noites consecutivas. A próxima etapa é no final de julho e já se defende uma revisão das regras de quem pode ir debater

Texto Hélder Gomes

“A campanha de Joe Biden está finalmente a perceber que precisa de confrontar mais os seus adversários e de se encontrar mais com os eleitores. Ele não é um Presidente em exercício a concorrer para a reeleição. É um ex-vice-presidente a concorrer para o seu primeiro mandato.” É em tom de advertência que o gestor de relações públicas Russell Schaffer faz um balanço dos dois dias de debates com 20 candidatos para a nomeação democrata às presidenciais americanas de 2020. “Biden parecia um bocadinho enferrujado esta quinta-feira. Ele não fez nada em particular que o prejudicasse mas, para um candidato que lidera as sondagens, esperava que dominasse muito mais o debate”, avalia ao Expresso, a partir de Nova Iorque.

Filha de pai negro e mãe indiana, Kamala Harris confrontou diretamente Biden (à esq.) no debate de quinta-feira. Entre os dois, Bernie Sanders <span class="creditofoto">Foto Mike Segar / Reuters</span>

Filha de pai negro e mãe indiana, Kamala Harris confrontou diretamente Biden (à esq.) no debate de quinta-feira. Entre os dois, Bernie Sanders Foto Mike Segar / Reuters

Mesmo sem fazer “nada que o prejudicasse”, Biden esteve sob fogo de dois outros candidatos a defrontar o atual Presidente, Donald Trump, nas eleições do próximo ano: a senadora californiana Kamala Harris e o congressista Eric Swalwell. Filha de pai negro e mãe indiana, Harris confrontou diretamente Biden. “Não acredito que seja um racista mas foi doloroso ouvi-lo falar sobre dois senadores americanos que construíram a sua reputação e carreira com base na segregação racial neste país”, atacou. O antigo vice-Presidente de Obama, que disse recentemente que em tempos trabalhou com segregacionistas para fazer avançar as coisas no Senado, defendeu-se: “É uma descaracterização da minha posição em toda a linha. Eu não elogiei racistas, isso não é verdade. Se quisermos que esta campanha seja dominada pela discussão sobre quem apoia os direitos civis e se eu o fiz ou não, tenho todo o gosto. Continuo a pensar que temos de fazer mudanças fundamentais e que esses direitos civis, a propósito, incluem não apenas os afroamericanos mas também a comunidade LGBT.”

Já Swalwell, um dos candidatos menos conhecidos, instou o veterano de 76 anos a passar o testemunho aos candidatos mais jovens. “Eu tinha seis anos quando um candidato presidencial foi à Convenção Democrata na Califórnia e disse que estava na hora de passar o testemunho a uma nova geração de americanos. Esse candidato era o então senador Joe Biden. Ele estava certo quando disse isso há 32 anos, ainda está certo hoje”, atirou. Biden respondeu: “Ainda estou a segurar esse testemunho. Quero deixar isso claro.” Esta é a terceira vez que se candidata à Casa Branca.

“TRUMP É FALSO, MENTIROSO PATOLÓGICO E RACISTA”, ATACOU SANDERS

A prestação de Harris não foi uma surpresa para Russell Schaffer. “Foi a candidata que capitalizou mais no debate, ao derrotar dois homens na casa dos 70 anos [Biden e o senador do Vermont Bernie Sanders]. Trump pode facilmente ser o terceiro”, diz. E acrescenta que tanto Harris como Pete Buttigeig, o mayor de South Bend, no estado do Indiana, demonstraram possuir um “talento político natural”. “Ambos tiveram momentos memoráveis, o que é algo que os favorece junto de muitos eleitores que não sabem bem quem eles são, ainda estão indecisos ou apoiam sem grande convicção qualquer outro candidato”, desenvolve o gestor. Apesar de se ter destacado, Buttigeig também esteve sob escrutínio a propósito dos disparos fatais da polícia de South Bend sobre um negro no início do mês, concedendo que falta diversidade à força policial da sua cidade.

Enquanto os outros se digladiaram entre si, os dois candidatos que lideram as sondagens – Biden e Sanders – dirigiram os seus ataques a Trump, que já oficializou a sua recandidatura. “O povo americano percebe que Trump é falso, que Trump é um mentiroso patológico e um racista e que mentiu ao povo americano durante a sua campanha [para as eleições de 2016]”, atacou o senador. Por sua vez, Biden sinalizou que os cortes nos impostos para os ricos e outras políticas económicas de Trump estão a aumentar a desigualdade económica nos Estados Unidos. “Trump colocou-nos numa situação horrível. Temos uma enorme desigualdade em termos de rendimentos”, referiu.

Para o gestor de relações públicas ouvido pelo Expresso, “Sanders mudou definitivamente a discussão entre os candidatos democratas”. “A guinada à esquerda deve-se, em grande medida, a ele”, sublinha. O antigo governador do Colorado John Hickenlooper advertiu que isso pode prejudicar o objetivo principal do Partido Democrata, ou seja, derrotar Trump. “Se não definirmos claramente que não somos socialistas, os republicanos vão perseguir-nos de todas as formas possíveis e apelidar-nos de socialistas”, alertou.

Quando questionados se apoiariam um plano de saúde que eliminasse os seguros privados, dos dez candidatos apenas Sanders e Harris (à direita) levantaram as mãos <span class="creditofoto">Foto Mike Segar / Reuters</span>

Quando questionados se apoiariam um plano de saúde que eliminasse os seguros privados, dos dez candidatos apenas Sanders e Harris (à direita) levantaram as mãos Foto Mike Segar / Reuters

“O SONOLENTO JOE” E “O LOUCO BERNIE”

Sanders apelou a uma “revolução política” para mudar um país onde as três pessoas mais ricas – Bill Gates, Jeff Bezos e Warren Buffett – têm mais riqueza do que a metade mais pobre. O senador, que em 2016 perdeu a nomeação democrata para Hillary Clinton, reiterou que é possível garantir um seguro médico público para toda a população desde que haja uma sublevação contra as farmacêuticas e as seguradoras. Quando questionados se apoiariam um plano de saúde que eliminasse os seguros privados, dos dez candidatos apenas Sanders e Harris levantaram as mãos.

Russell Schaffer considera “extraordinário” que todos os candidatos em palco esta quinta-feira dissessem que o respetivo plano de saúde cobriria os imigrantes sem documentos. “Foi como um presente para Trump. Ainda que seja a coisa humana a fazer, penso que isso poderá alienar muitos eleitores persuasíveis que terão apoiado Trump em 2016 e estão à procura de uma mudança em 2020”, diz. De facto, o Presidente, que se encontra no Japão na cimeira do G20, escreveu no Twitter: “Todos os democratas levantaram as mãos para dar cuidados de saúde ilimitados a milhões de imigrantes ilegais. E que tal tratarem dos cidadãos americanos primeiro?”.

Horas mais tarde, Trump insistia no ataque, escrevendo que enquanto ele se encontrava na cimeira “a representar bem o país”, nem “o Sonolento Joe” nem “o Louco Bernie” se tinham saído bem no debate. “Um está exausto, o outro é maluco – por isso, qual é o problema?”, acrescentou.

“DEMASIADOS CANDIDATOS EM PALCO”

Na noite anterior, o ex-congressista texano Beto O’Rourke foi atacado por não fazer o suficiente para mudar as leis da imigração e por defender seguros privados na saúde, enquanto a senadora do Massachusetts Elizabeth Warren apontou a “corrupção pura e simples” que é ter “uma economia que está a ir muito bem só para quem tem dinheiro”. O antigo secretário da Habitação Julián Castro também se notabilizou na quarta-feira, sobretudo pelos ataques pungentes que desferiu contra O’Rourke.

O modelo escolhido para estes debates – 20 candidatos distribuídos por duas noites, com cada candidato a ter direito a um minuto para cada resposta –, merece o chumbo de Russell Schaffer. “Havia demasiados candidatos em palco [dez em cada um dos debates]. Os moderadores interromperam constantemente os candidatos quando estes estavam em crescendo a tentar defender um ponto de vista. Penso que o Comité Nacional Democrata precisa de definir melhor quem pode participar na próxima ronda de debates”, sugere. “Neste momento, só é preciso atender a um determinado patamar, tendo em conta o número de doadores, e conseguir apenas 1% nas sondagens. Isso parece-me um pouco condescendente quando se está concorrer ao emprego mais poderoso do mundo”, critica.

E A SEGUIR?

Uma coisa é certa: os debates desta semana inauguraram precedentes num grande partido político norte-americano. Harris tornou-se a primeira mulher afroamericana a participar num debate presidencial. Além dela, participaram mais cinco mulheres, dois afroamericanos, um asiático-americano e dois candidatos abaixo dos 40 anos, um deles um ex-militar assumidamente homossexual (Buttigieg). Do lado republicano, só o antigo governador do Massachusetts Bill Weld se apresentou para disputar a nomeação com Trump, mas tudo indica que não terá quaisquer hipóteses num partido rendido ao atual Presidente.

Até ao arranque das primárias democratas em fevereiro do próximo ano, está prevista mais uma dezena de debates. A próxima etapa, também dividida em duas noites, acontece no final de julho em Detroit, no Michigan.