A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

Vais comer com quem?

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No documentário da HBO “One Nation Under Stress”, a estrela médica da CNN Sanjay Gupta retrata a sociedade americana, mas julgo que o retrato, negro e angustiante, pode ficar na parede de qualquer nação ocidental.

O retrato assenta nos traços do stresse e nos efeitos físicos desse stresse, a começar na diminuição da esperança média de vida. E é aqui que entra em jogo aquilo que Gupta apelida de “paradoxo hispânico”: apesar de serem tão ou mais pobres do que outras comunidades, os hispânicos vivem mais tempo. Porquê? A resposta é a vida familiar e comunitária. Quando tem uma forte base familiar e comunitária, o ser humano vive literalmente mais tempo. Os hispânicos de hoje (ou, pelo menos, algumas comunidades hispânicas) fazem lembrar os italianos de há 50 anos. Aliás, em meados do século XX estudava-se muito uma pequena cidade chamada Roseto (Pensilvânia), que tinha uma esperança média de vida extraordinária e a explicação era precisamente a vida familiar e comunitária ainda de inspiração italiana. As doenças de coração baixavam a pique devido a este “efeito Roseto”. Esta é uma lição para a nossa sociedade hiperindividualizada e, por isso, hiperstressada.

Nós vivemos numa sociedade obcecada com os alimentos e a nutrição, mas, ao mesmo tempo, somos uma sociedade de gente solitária que come sozinha com um tabuleiro à frente da TV. O stresse e o desespero são inevitáveis

Hoje em dia há a tentação para ver a longevidade enquanto consequência daquilo que se come, como se a refeição fosse uma mera questão técnica e nutricional. Mas o que Sanjay Gupta e o “efeito Roseto“ nos dizem é outra coisa: “Vais comer com quem?” (a companhia, a família) é uma pergunta mais importante do que “vais comer o quê?” Nós vivemos numa sociedade obcecada com os alimentos e a nutrição, mas, ao mesmo tempo, somos uma sociedade de gente solitária que come sozinha com um tabuleiro à frente da TV. O stresse e o desespero são inevitáveis. Não há nutrição nos salve desta solidão.