DEMISSÃO DE THERESA MAY

O próximo líder vai herdar o mesmo inferno

<span class="creditofoto">FOTO HANNAH MCKAY/REUTERS</span>

FOTO HANNAH MCKAY/REUTERS

May esperou até ao fim para ouvir os adversários e já foi tarde. Alguns dizem que foi resiliente, outros viram nas mesmas ações pouco mais que intransigência. A sua saída não resolve o Brexit, mas Boris Johnson, apontado como sucessor, também não é consensual: pondera sair sem qualquer ligação económica à UE e o partido não está inteiro do lado dele

Texto Ana França e Helena Bento

“A medida pode ser considerada ousada, mas eu sou da opinião que os mais ousados ​​são os mais seguros.” A frase foi dita por Horatio Nelson, destemido oficial da Marinha britânica na altura do Napoleão que praticava táticas de guerra pouco convencionais e discursos poéticos e inflamados; e Andrew Gimson, historiador e autor da biografia “Boris: The Rise of Boris Johnson”, cita-a para justificar por que razão acredita que o lugar da ainda primeira-ministra britânica, Theresa May, à frente do Partido Conservador será ocupado seguramente por Boris Johnson.

Ao anúncio de demissão do cargo de líder dos conservadores feito por Theresa May esta sexta-feira, num discurso à porta do n.º 10 de Downing Street, seguiram-se palavras laudatórias e elogios à sua “resiliência”, “dignidade” e “coragem”, por parte de responsáveis políticos da União Europeia - Juncker incluído - e de membros do seu partido, mas a sua demissão levantou também várias questões - e há uma que sobressai: quem sucederá a May no cargo e o que significará isso para o Brexit?

Vários nomes estão na calha, dois já confirmaram, aliás, que pretendem mesmo candidatar-se, Jeremy Hunt e Boris Johnson, mas parece ser este último a reunir maior consenso. “Os ‘Tories’ estão tão preocupados com [Nigel] Farage que provavelmente vão optar por Boris em vez de uma figura mais administrativa como Hunt. May já foi essa figura e não foi suficiente”, continua Andrew Gimson, em declarações ao Expresso.

Euan Carss, do departamento de Estudos Internacionais e Europeus do King’s College London e também investigador do European Council on Foreign Relation, diz que entre Boris Johnson e Jeremy Hunt é difícil prever mas secunda a leitura feita por Gimson. “Johnson tem mais apoio das bases mas a sua posição inflexível sobre o Brexit não agrada à ala mais moderada do partido. Hunt, pelo contrário, tem sido criticado por ser simplesmente a ‘versão masculina’ de May. No entanto, tendo já criticado o atual acordo de saída do Brexit, é provável que consiga o apoio de alguns ‘hardliners’ durante as próximas semanas”, diz ao Expresso.

Foto Getty

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Em última instância, continua Euan Carss, “tudo irá depender do quanto os conservadores querem uma rutura clara (Hunt) ou uma rutura verdadeiramente clara”. E pede atenção também ao “nível de sucesso do Partido Brexit nas eleições europeias”, já que “os conservadores podem vir a ter de optar por uma abordagem mais dura para garantir o seu futuro”.

Moderados “fogem” do “no deal”

Enquanto vários nomes sonantes dos ‘tories’ correram a declarar o seu apoio ao ex-presidente da Câmara de Londres, outros decidiram antes dar início a ao movimento “Stop Boris”. Para garantir um lugar no boletim de eleição para o próximo líder conservador, cada candidato tem de garantir o apoio de pelo menos 105 deputados conservadores.

A ex-secretária de Estado do Trabalho e Pensões Amber Rudd é um dos nomes falados para suceder a May, mas faz parte do tal “grupo dos administrativos” que Andrew Gimson não vê como os líderes ideais. Mas o que é certo é que o nome dela está à cabeça do “One Nation”, um influente grupo de 60 deputados conservadores que estão contra a saída sem acordo e por isso contra a posição que Boris Johnson defende caso tudo o resto falhe. O chamado “grupo dos moderados” tem medo que, num cenário de eleições gerais, Johnson não se repugne com uma aliança com o Brexit Party, de Nigel Farage, a estrela do movimento pela saída sem acordo. “Vamos lá puxar a ficha de uma vez”, é uma frase que se ouve muitas vezes nos comícios de Farage.

Alguns conservadores consideram mesmo demitir-se caso o cenário “no deal” seja, de repente, política oficial dos conservadores. Dominic Grieve, à iTV, disse que “o partido tem de pensar seriamente se vale a pena ser mais ‘brexiteer’ que o Partido do Brexit porque há um preço a pagar por isso e é alto: a alienação de uma enorme faixa de eleitores que não quer um Brexit duro, prejudicial para a economia”.

Os conservadores já estão, aliás, a pagar a fatura pelos seus ziguezagues no processo do Brexit. Primeiro foram as eleições gerais de 2017, que Theresa May havia marcado para reforçar a sua posição no Parlamento mas acabou a ter de mendigar ajuda aos unionistas da Irlanda do Norte após perder a maioria. Depois foram as inúmeras derrotas no parlamento que desaguaram nas eleições locais de maio deste ano, em que os conservadores perderam mais de 1250 vereadores. A projeção para as europeias também não servem como respaldo aos conservadores: os resultados são conhecidos no domingo e as sondagens dão ao partido uns muito magros 11%.

Jeremy Hunt anunciou esta sexta-feira a candidatura à liderança do Partido Conservador <span class="creditofoto">FOTO GETTY IMAGES</span>

Jeremy Hunt anunciou esta sexta-feira a candidatura à liderança do Partido Conservador FOTO GETTY IMAGES

Boris está preparado para “abandonar a sala das negociações”

Theresa May viu o seu acordo de saída do Reino Unido da UE ser chumbado em três ocasiões e, esta semana, acabou por afastar alguns dos poucos conservadores que ainda confiavam nela depois de apresentar uma nova proposta que previa a possibilidade de os deputados se pronunciarem sobre a realização de um segundo referendo e que propunha uma união aduaneira temporária entre o Reino Unido e a UE após a saída.

A proposta nem chegou a ser votada porque os trabalhistas, e mesmo os conservadores, manifestaram logo em vários “tweets” e declarações avulsas ao jornalistas que não apoiariam May. Então ela desistiu de a levar a um Parlamento que está há pelo menos um ano em alvoroço. Precisamente por isso é que o historiador Andrew Gimson concorda que é “preciso um líder com um carácter muito diferente do de Theresa May, como Boris”. Numa conferência económica na Suíça, poucas horas depois da demissão de May, Boris reforçou a sua posição, dizendo que “com ou sem acordo o Reino Unido sairá da União Europeia dia 31 de outubro” e que “a melhor forma de o país conseguir um bom acordo é preparando-se para um cenário de ‘não acordo’”. Eis a filosofia de Johnson, nas suas próprias palavras: “Para levarmos as negociações a algum lado é preciso estar-se preparado para abandonar a sala”. Ou seja, como diz Euan Carss, “se Johnson for bem-sucedido em colocar o país à beira de um ‘não acordo’, então é provável que o Parlamento possa ser forçado a unir-se em torno do atual acordo (ou um semelhante)”. Andrew Gimson, biógrafo de Boris Johnson, garante ao Expresso que “ele vai analisar todos os caminhos para chegar ao seu objetivo, mesmo aqueles que outros teriam afastado como possibilidades por serem demasiado arriscados”.

Mark Leonard, cofundador e diretor do European Council on Foreign Relations, também não tem dúvidas de que Boris Johnson é o favorito à sucessão de Theresa May, e Dominic Raab, que exerceu o cargo de secretário de Estado para a saída da UE entre julho de 2018 e novembro de 2018, o segundo da lista. Ambos são ‘brexiteers’ e, portanto, o “perigo” é que ambos façam campanha por um Brexit duro, afirma ao Expresso, antecipando que Boris Johnson vai fazer uma campanha de apelo à renegociação do acordo e remover o backstop, mecanismo que pretende evitar o regresso de uma fronteira física entre a República da Irlanda, Estado-membro da UE, e a província britânica da Irlanda do Norte. “Se não conseguir fazê-lo, vai insistir na saída sem acordo na esperança de que a União Europeia force a Irlanda a comprometer-se.”

Theresa May no momento em que anunciou a sua demissão do cargo de líder dos conservadores <span class="creditofoto">FOTO GETTY IMAGES SIMON DAWSON/REUTERS</span>

Theresa May no momento em que anunciou a sua demissão do cargo de líder dos conservadores FOTO GETTY IMAGES SIMON DAWSON/REUTERS

Um legado difícil de digerir - para May e para quem vier

May disse que ser primeira-ministra foi uma “honra” e disse estar “grata” por ter servido o país que ama. Foi aí que se emocionou, quando já só faltavam alguns segundos para o fim do discurso. Enumerou algumas ditas conquistas do seu governo no que diz respeito ao défice, ao desemprego e ao aumento de fundos para a saúde mental, mas depois admitiu: “É – e será sempre – um motivo de profundo desgosto para mim não ter sido capaz de cumprir o ‘Brexit’”. A primeira-ministra abandona a liderança do Partido Conservador e do Governo no dia 7 de junho, iniciando a 10 do mesmo mês o processo de escolha do próximo líder conservador - e futuro primeiro-ministro do Reino Unido -, esperando-se que esteja concluído em meados de julho.

Foram três anos a tentar contornar as aspirações pessoais de uns e os medos de outros, uns e outros membros do seu próprio partido. Quando, mesmo no estertor, estendeu a mão a Corbyn era já uma líder fragilizada e os trabalhistas não tinham motivos para apoiá-la - até porque a consequência de dinamitar toda e qualquer proposta de May até podia levar a uma eleição geral. Para já parece um cenário pouco possível apesar de ser precisamente essa “a verdadeira atitude conservadora a ter”, diz Gimson.

“Caso o Governo não obtivesse a maioria e não conseguisse que a sua medida principal passasse - neste caso o acordo Brexit de Theresa May -, os conservadores deviam pedir à Câmara dos Comuns para aprovar uma moção de confiança no Governo, mesmo com a ameaça de uma eleição geral a pairar”, acrescenta o autor.

Uma outra hipótese para o desenlace é uma aliança de moderados de ambos os partidos: “Oliver Letwin e Dominic Grieve, do lado dos conservadores, podem unir-se a Hilary Benn e Yvette Cooper, trabalhistas, e assim tentar influenciar a situação atual, formando uma aliança entre partidos, especialmente para evitar um ‘no deal’. Isso pode acontecer novamente”.

Quanto ao legado de May, Simon Usherwood não augura nada de bom: “Não há qualquer legado, exceto um completo falhanço em confirmar o Brexit. Tanto texto dedicado hoje à importância do compromisso quando todo o seu tempo à frente do país foi marcado por uma completa incapacidade para negociar, para ouvir, para absolver outras opiniões. É muito difícil entender como poderá algum dia a História vir a julgá-la de forma benevolente”, diz ao Expresso o professor de Política na Universidade de Surrey e diretor do European Matrix, um centro de estudos para o esclarecimento sobre a UE. “O problema com a resiliência é que, depois de um certo limite, passa a intransigência e foi esse o seu maior problema.” Quem quer que seja a próxima vítima, considera o investigador, “vai rapidamente descobrir que os problemas do país e dos conservadores neste momento não são só a May, aliás, são muito pouco a May”. Usherwood considera que o problema do Brexit “permanece inalterado, porque as opções possíveis são as mesmas”, ou seja, da Europa nada de novo. “O novo líder pode mesmo ter de levar ao Parlamento o mesmo acordo”, conclui.