Não estava em casa, senhor Sérgio Moro
A tentativa de José Sócrates colar o seu processo ao de Lula da Silva não é nova. E é tóxica. Porque, com todas as críticas que alguém faça à Operação Marquês, nada nela se assemelha ao aborto judicial que produziu a condenação do ex-Presidente brasileiro. Um processo que viola os princípios mais basilares do Estado de Direito, que insulta a inteligência de qualquer pessoa com algum sentido de justiça e que foi, como se viu no percurso de Sérgio Moro, absolutamente determinado por uma agenda eleitoral. Sócrates quer que acreditemos que é o seu caso. Mas não é.
Quem escreve isto é um cidadão sem responsabilidades políticas. E, ainda assim, tenho o cuidado de nunca dar o passo que tornaria o meu texto inaceitável. Terei, com base no que sei ou até apenas com base no que o próprio Sócrates nos disse, o direito a fazer um julgamento moral do seu comportamento. Não tenho o direito de dizer que ele é um criminoso. Porque “criminoso” é estatuto que depende de decisão judicial. E essa não existe.
Aqui, criminoso é quem é condenado. Aqui, não são ministros que condenam. Bem sei que isto é estranho para Sérgio Moro. Mas, não estando em sua casa, podia adaptar-se a um país onde o Estado de Direito não foi suspenso e mostrar o mínimo de respeito diplomático
Quando o ministro da Justiça brasileiro disse, em reação a uma afirmação de um cidadão acusado mas ainda não condenado, que não debatia com criminosos pela televisão, cometeu duas faltas inaceitáveis. A primeira como antigo juiz, a segunda como atual ministro.
A falha como antigo juiz é evidente e muito reveladora. Um magistrado que chama criminoso a alguém que ainda nem sequer entrou na sala de um tribunal é um magistrado que despreza o processo judicial. A frase é a confissão de que, para Sérgio Moro, as convicções dos juízes se constroem antes de um julgamento e, no caso que estava a comentar, com base em notícias dos jornais. Dá que pensar sobre o que ele andou a fazer no Brasil. Esta falha levou-a para casa e a maioria dos brasileiros parece viver bem com ela. O juiz-justiceiro, de que Sérgio Moro é dos representantes mais caricaturais, é um tipo de herói em voga e representa a derradeira crise do Estado de Direito e dos seus fundamentos.
Mas a outra falha, enquanto ministro, diz-nos respeito e exigiria uma reação firme da diplomacia portuguesa. O ministro da Justiça brasileiro atreveu-se a imiscuir-se num caso em julgamento, determinando uma condenação de um acusado que ainda não foi sequer julgado. Na atual bagunça brasileira, será tão normal ministros comentarem processos judiciais como juízes intervirem na vida política. Por cá nem uma nem outra coisa são encaradas como naturais. Ao fazer este comentário, Sérgio Moro não ofendeu José Sócrates, figura que pouco interessa nesta história. Ofendeu, enquanto ministro em visita, a Justiça e o Estado português.
Continuo à espera de uma reação do governo português, que mandou o ministro dos Negócios Estrangeiros receber Sérgio Moro, a esta interferência do governo brasileiro num processo judicial em curso. As compreensíveis dificuldades que o PS tem em lidar com o caso de Sócrates não podem abrir a porta para este desrespeito diplomático. Aqui, criminoso é quem é condenado. Aqui, não são ministros que condenam. Bem sei que isto é estranho para o juiz-ministro Sérgio Moro. Mas, não estando em sua casa, podia adaptar-se a um país onde o Estado de Direito não foi suspenso e mostrar o mínimo de respeito diplomático.