Energia
Governo português preocupado com importação de eletricidade de Marrocos
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Centrais a carvão marroquinas, livres de taxas pelas suas emissões de CO2, estão a vender à Península Ibérica eletricidade mais barata, quando Portugal e Espanha já se comprometeram a acabar com as suas centrais a carvão. O secretário de Estado da Energia, João Galamba, disse ao Expresso que a questão “tem de ser resolvida a nível europeu” e defende a intervenção da Comissão Europeia
Texto Miguel Prado
Em Espanha já soaram os alertas e em Portugal o tema está a ser acompanhado pelo Governo. A Península Ibérica está desde o final do ano passado a importar volumes significativos de eletricidade de Marrocos, energia proveniente de duas termoelétricas a carvão que, por não terem de adquirir licenças de emissão de CO2, têm vindo a oferecer preços mais baixos do que centrais semelhantes em Espanha e Portugal.
O fluxo importador de eletricidade marroquina é feito através das interligações submarinas existentes entre Espanha e aquele país do Norte de África, tendo já sido denunciado à Comissão Europeia, por pôr em causa a estratégia europeia de descarbonização do sector elétrico. Esta estratégia de descarbonização levou vários governos, incluindo o português e o espanhol, a comprometerem-se a acabar com a produção elétrica a partir do carvão o mais tardar até 2030.
O secretário de Estado da Energia, João Galamba, assume que o Governo português está “preocupado” com a questão. “Discuti esse tema em Bucareste [no Conselho de Ministros informal na área da energia, que decorreu esta semana] com o secretário de Estado espanhol”, declarou João Galamba ao Expresso. “Isto tem de ser resolvido a nível europeu”, defendeu o governante.
“Num momento em que estamos a internalizar custos ambientais, não podemos passar a importar eletricidade produzida a partir do carvão”, afirmou ainda o secretário de Estado da Energia.
Este é um tema relevante no plano energético, atendendo a que o atual Governo lançou um estudo de viabilidade para a criação de uma nova interligação ibérica, que ligará diretamente Portugal a Marrocos. Este projeto foi defendido “com unhas e dentes” pelo ex-secretário de Estado da Energia, Jorge Seguro Sanches, como solução para Portugal poder instalar um largo número de centrais solares fotovoltaicas e conseguir escoar essa produção para Marrocos.
No entanto, a hipótese de Portugal vir a ter uma interligação elétrica com Marrocos, a somar às que Espanha já tem com aquele país, acarreta o risco de que afinal essa infraestrutura seja sobretudo usada para importar eletricidade marroquina.
João Galamba diz estar ainda à espera das conclusões do estudo. “Estamos a fazer o estudo de viabilidade. E aguardamos com expectativa a posição da Comissão Europeia sobre este tema”, comentou o governante. Certo é que Portugal já se comprometeu a deixar de ter produção elétrica a partir de carvão até 2029 (encerrando nos próximos anos as centrais termoelétricas de Sines e do Pego).
O consultor Paulo Carmona, ex-presidente da Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis (ENMC), abordou este problema, num artigo publicado esta quinta-feira no site “Ambiente Online”. “Portugal elimina a produção de energia a partir do carvão. Passa a importar eletricidade produzida a partir de carvão. Os marroquinos ficam mais ricos, os portugueses mais pobres e o CO2 fica na mesma”, escreveu Paulo Carmona.
Uma vez que a interligação existente é entre Marrocos e Espanha, não é possível saber que volumes de energia marroquina poderão chegar a Portugal através das ligações que o nosso país tem com Espanha. “Num dia em que Espanha importe energia e em que Portugal, por sua vez, compre energia a Espanha, é impossível determinar a origem dessa energia importada por Portugal”, explica fonte oficial da REN - Redes Energéticas Nacionais.
Marrocos: de comprador a vendedor
O site especializado “El Periódico de la Energia” revelou esta semana que a Comissão Europeia está a analisar esta questão, para tentar encontrar uma solução, que é particularmente preocupante em Espanha, não só porque é o comprador direto da energia marroquina, mas também porque o país conta com um elevado número de postos de trabalho ligados ao carvão (quer na produção desta matéria-prima, quer nas centrais elétricas que o queimam).
Segundo aquela fonte, foi em novembro de 2018 que Espanha deixou de ser um exportador líquido de eletricidade para Marrocos e passou a ser um importador de energia elétrica. Entre novembro de 2018 e fevereiro de 2019 Espanha importou de Marrocos o equivalente a 10% das suas importações de eletricidade (que incluem ainda Portugal e França).
E o que motivou afinal a mudança? A entrada em operação de duas centrais termoelétricas a carvão. Uma, com 350 megawatts (MW), é detida pelo grupo chinês Sepco. A outra, com 1400 MW, localizada em Safi (250 quilómetros a sul de Casablanca), é a maior central elétrica de Marrocos (ultrapassando também a maior central portuguesa, a que a EDP tem em Sines).
No seu conjunto, aquelas duas centrais emitem diariamente 25 mil toneladas de dióxido de carbono (CO2). Se fossem obrigadas a comprar licenças de emissão no mercado europeu teriam de suportar um encargo diário na casa dos 600 mil euros. Como não têm esse encargo, apresentam um preço de venda da sua eletricidade inferior ao das centrais a carvão ibéricas.
Ao oferecerem preços mais competitivos, as centrais marroquinas ganham lugar no diagrama que casa a oferta e a procura de eletricidade no mercado ibérico de eletricidade (Mibel), um sistema que está desenhado para diariamente ordenar a compra de energia das fontes mais baratas para as mais caras.
A cada dia, este sistema considera em primeiro lugar toda a eletricidade produzida nos regimes de tarifa garantida (em que tem especial destaque a produção eólica), que entram no tal diagrama com preço zero. Depois entram as centrais que ofereçam a sua energia aos mais baixos preços, sendo adquirida a eletricidade necessária para preencher o consumo desse dia.
Assumindo que num dado dia Portugal e Espanha consomem 200.000 megawatts hora (MWh) e que a produção renovável com tarifa garantida produz 120.000 MWh, o operador do sistema elétrico precisa de adquirir mais 80.000 MWh.
Imaginemos que há um conjunto de barragens que oferecem 40.000 MWh a 30 euros por MWh, enquanto as centrais termoelétricas oferecem outros 40.000 MWh a 50 euros por MWh, mas pelo meio há outros 40.000 MWh disponíveis nas interligações (seja energia nuclear de França ou centrais a carvão de Marrocos) a 40 euros por MWh.
Neste caso (muito simplificado, porque na realidade cada central elétrica oferece um preço diferente), a procura ibérica nesse dia será satisfeita pela combinação da eletricidade com tarifa garantida, pela energia das barragens e pela importação de eletricidade, ficando de fora as termoelétricas da Península Ibérica. Mas todas as centrais serão remuneradas a 40 euros por MWh, o preço das últimas centrais a entrarem no casamento oferta-procura.
Este desenho do mercado ibérico nasceu para garantir um quadro de concorrência dos produtores de eletricidade, obrigando cada central a ser competitiva na venda da sua energia para não ficar de fora deste casamento entre oferta e procura.
É um “mercado marginalista” (por pagar a eletricidade a todos os produtores por igual, pelo valor cobrado pelo último produtor necessário para satisfazer a oferta), que tem vindo a ser posto em causa por vários críticos, devido ao crescente peso de fontes de eletricidade que não se dão bem com esta organização do mercado.
A forte penetração de renováveis no sistema elétrico veio distorcer o funcionamento deste mercado ibérico, já que os projetos eólicos e solares acarretam sobretudo elevados investimentos iniciais, sem custos variáveis. Pelo contrário, as grandes centrais termoelétricas têm um investimento inicial mas também vivem com elevados custos variáveis com a compra de combustível (carvão ou gás natural) ou com a variação do preço das licenças de emissão de CO2.
A partir do momento em que a maior parte da eletricidade consumida na Península Ibérica resulta de investimentos em projetos sem custos variáveis, justifica-se a manutenção de um mercado grossista assente no pressuposto da elevada volatilidade de preços?
A crescente importação de eletricidade de Marrocos, em condições de mercado distintas das que se aplicam aos produtores ibéricos, vem pôr mais um ponto de interrogação no debate sobre o modelo de funcionamento do mercado elétrico.
Centrais a carvão marroquinas, livres de taxas pelas suas emissões de CO2, estão a vender à Península Ibérica eletricidade mais barata, quando Portugal e Espanha já se comprometeram a acabar com as suas centrais a carvão. O secretário de Estado da Energia, João Galamba, disse ao Expresso que a questão “tem de ser resolvida a nível europeu” e defende a intervenção da Comissão Europeia