A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

O tempo encantado

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Se a memória não me falha, Nietzsche dizia que Kant era um cristão manhoso. É um insulto, sem dúvida, mas é certeiro no sentido em que Kant secularizou a mensagem do Evangelho. Ora, à medida que se avança na Bíblia, é impossível não sentirmos ecos e mais ecos daquela farpa de Nietzsche, ou seja, é impossível não sentirmos que a filha do desencantamento do mundo, a cultura moderna, acaba por ser um eco do encantamento religioso simbolizado pela Bíblia, claro, mas também pelos deuses de Homero.

Há um “lost in translation” permanente nos filmes de Nolan, porque aquilo que ele quer contar exige uma mente dentro do encantamento do mundo, e não uma mente tecnológica. Nolan é alguém a tentar traduzir o velho mistério através de uma linguagem moderna e ultra-explicada. Não funciona

Olhem por exemplo para um dos cineastas que tenta fazer cinema de autor no centro do sistema de Hollywood: Christopher Nolan. Eu não sou fã, embora aprecie as premissas intelectuais. Aliás, fico sempre com a impressão de que Nolan devia fazer documentários, e não filmes de ficção. Gosto sobretudo da forma como ele intelectualiza o tempo. A maioria dos filmes de Nolan são sobre a forma como o ser humano perceciona o tempo, quer o tempo interior da nossa consciência e inconsciência (“Inception”), quer o tempo exterior (“Interstellar”). O tempo muda, é plástico, é moldado e moldável, é esticado e encolhido, quer no interior dos nossos sonhos, quer no exterior do espaço sideral. Nada de novo. Na Bíblia e na “Odisseia”, os autores antigos colocavam deuses e anjos a esticar o tempo interior dos humanos. Por exemplo, Homero coloca Atena a esticar os sonhos de Telémaco; ao esticar esse tempo interior, Atena ganha espaço para colocar na inconsciência de Telémaco uma ideia que ele não tinha; um vírus bom. Se repararem, esta é a base do “Inception”. Só que Nolan, filho do desencantamento do mundo, não tem coragem para convocar deusas e serafins, e inventa uma tecnologia humana capaz desta artimanha divina; a mente humana é tratada como se fosse um mero software passível de ser hackeado. O resultado é a falta de mistério e drama no filme, que mais se assemelha a uma sucessão de aulas de neurociência, psiquiatria e psicologia.

No imaginário bíblico, Deus controla o tempo como nós controlamos o espaço, ou seja, o tempo passa a ser uma variável espacial nas mãos de Deus. Em “Interstellar”, Nolan concebe uma humanidade que - no futuro - terá este poder. De novo, o efeito dramático é penoso. O filme parece uma aula de física, e não um filme com dramas e dilemas humanos.

Há um “lost in translation” permanente nos filmes de Nolan, porque aquilo que ele quer contar exige uma mente dentro do encantamento do mundo, e não uma mente tecnológica. Nolan é alguém a tentar traduzir o velho mistério através de uma linguagem moderna e ultraexplicada. Não funciona. O que ele quer contar exige uma linguagem simbólica como a da série “Carnivale”, da HBO. Esta série, diga-se, não é brilhante, mas tem pelo menos a coragem para convocar o grotesco e o divino. Se queremos voltar ao encantamento do mundo, então devemos voltar agarrados ao dorso do gótico sulista, deixando para trás a couraça fria do cienticismo que desencantou o mundo.