Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Rapar o fundo do tacho da política

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Sobre o debate político que a polémica em torno dos familiares no governo deveria abrir escreverei na edição do semanário “Expresso”, este sábado. A drástica redução do universo de recrutamento político, que transforma os partidos em grupos fechados de amigos, que naturalmente criam laços de relações, ou em rampas de lançamento para o mundo dos negócios, merece mais do que as trocas de galhardetes a que assistimos. Deixem-me, por hoje, tratar da hipocrisia que se instalou.

Ficamos pelos socialistas porque nunca se viu nada assim? Não sei se é verdade. Os critérios que estão a ser usados são demasiado difusos para o exercício comparativo que ainda ninguém se deu ao trabalho de fazer. Mas mesmo que fosse, os familiares que estão no Governo já lá estavam. A novidade é o início da campanha. A coisa ganhou tal dimensão que o Presidente teve de se pronunciar... Estou a brincar, o Presidente prenuncia-se sempre. Começou por dizer que para ele “família de Presidente não é o Presidente”. Uma lição de ética republicana que aprendeu com Craveiro Lopes, quando o pai, que era ministro, o levou a um espaço VIP. E depois chutou para Cavaco Silva.

Ter Cavaco a falar de ética e de favorecimento de amigos e família é como ter César a combater o nepotismo. A direita está a rapar no fundo do tacho da política: os casos. Só que este tipo de campanha terá sempre o efeito de ricochete. O ganho de curto prazo que julgam ter é o que acabará por os condenar

Já se sabe que para sermos mais sérios do que Cavaco temos de nascer duas vezes e em cada uma delas comparar e vender a um ex-secretário de Estado algumas ações do BPN, banco onde uma boa parte do seu Governo assentou praça. Chocado, o ex-Presidente disse que nunca viu nada assim num país democrático. Eu não fiquei chocado por o seu genro ter comprado o Pavilhão Atlântico ao Governo liderado pelo seu partido, porque estou convencido de que a proposta foi a melhor. Pode ser que os ministros convidados por Costa também tenham sido os melhores. Nisto, decidi ter a mesma boa vontade para todos. Imaginando que Cavaco acha que governou um país democrático, não viu nada disto a mulher do igualmente indignado e então ministro Marques Mendes foi nomeada adjunta do ministro Álvaro Amaro. Nem quando Durão Barroso entrou para o Governo onde estava o seu tio Diamantino Durão. Nem quando Miguel Beleza entrou no Governo mal Leonor Beleza saiu e esta delegou competências na sua mãe. É importante falar do passado, porque só assim podemos confirmar se isto nunca se viu ou nunca ninguém o quis ver.

Ter Cavaco a falar de ética e de favorecimento de amigos e família é como ter César a combater o nepotismo. Ou ter Vital Moreira a criticar relações familiares no PS, apesar de ter sido escolhido como cabeça de lista às europeias quando a sua mulher era secretária de Estado. Não acho que tenha mal, acho que quem se junta ao coro que tudo mistura para conseguir uma boa quantidade de casos deve ser tratado da mesma forma que trata os outros. É que estou a adorar o desfile de virgens, mas talvez seja melhor moderarem a excitação, se não se quiseram afogar todos na lama. Voltem à política, até para debater este tema.

Claro que se compreende que, à direita, não queiram falar de política. Para dizer o quê? Criticar o aumento do salário mínimo ou a redução dos passes não é uma boa linha de campanha. E ter Centeno a anunciar o défice mais baixo de sempre repetindo a retórica de Passos Coelho também não ajuda. Resta rapar o fundo do tacho da política: os casos. Só que este tipo de campanha terá sempre o efeito de ricochete e dá argumentos para os eleitores votarem em populistas. Não por revelar a verdade, mas porque alimenta uma indignação sem o contexto que nos dá a chave para a solução. Quando os políticos do sistema resolvem resumir o confronto eleitoral a uma sucessão de escândalos criam o clima para a decadência da democracia. O ganho de curto prazo que julgam ter é o que acabará por os condenar.