O verdadeiro coração das trevas
Se excluirmos a mania da reviravolta final, a série “Sharp Objects” (HBO) é notável. É notável na recriação daquele ambiente gótico e sulista (southern gothic). É notável na forma como explica que o sul dos EUA é mesmo um território geográfico e mental à parte: aquilo que nos parece inverosímil é na verdade a realidade física e mental de uma região que, por exemplo, ainda venera os heróis da Confederação. É ainda notável na forma como explora o território da violência feminina.
Esta é a assombração de “Sharp Objects”: para atingir o desejo de matar, uma mulher tem de sofrer muito mais do que um homem. O verdadeiro coração das trevas é feminino
As mulheres não são aqui as vítimas, são as agressoras (se não viu a série, meu caro leitor, não leia mais este texto). A agressão feminina torna o ambiente da série particularmente denso e incómodo. Chamem-me antiquado se quiserem, mas uma mulher a matar é uma cena mais violenta do que um homem a matar. Para quem vê (na realidade ou na ficção), é mais duro ver uma mulher a matar, porque a violência feminina é muitíssimo mais rara e por isso muitíssimo mais misteriosa. Como já salientei aqui a reboque da escritora bielorrussa Svetlana Alexievich e da general portuguesa Regina Mateus, a crueldade física não é tão natural para a mulher. Aliás, estamos no domínio dos factos: a esmagadora maioria dos homicídios e das violações é perpetrada por homens.
Isto porém não quer dizer que a mulher não é capaz de matar. De resto, é por isso que uma das personagens de “Sharp Objects” diz o seguinte ao xerife: “não seja sexista” (o xerife só tem suspeitos homens). Sim, é verdade, uma mulher pode matar. No entanto, ela tem de percorrer um caminho mais longo e penoso para carregar no gatilho ou na faca. Sem revelar muito do enredo, esta é a assombração de “Sharp Objects”: para atingir o desejo de matar, uma mulher tem de sofrer muito mais do que um homem. O verdadeiro coração das trevas é feminino.