TERRORISMO | NOVA ZELÂNDIA

49 como nós

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Ilustração João Melancia (com Ana França)

Quarenta e nove mortos é um número capaz de deixar “em choque” um país - a Nova Zelândia - onde o crime violento é coisa rara. A primeira-ministra não demorou a falar em “ataque terrorista” num mundo mais habituado a aplicar a nomenclatura quando os muçulmanos são os algozes e não as vítimas: “Muitos dos afetados são migrantes e refugiados. Esta é a sua casa. Eles são nós”. 49 como nós. Ou como diz um imã ouvido pelo Expresso: “Estes extremistas não representam a maioria dos neozelandeses, do mesmo modo que os muçulmanos extremistas não nos representam”

Texto Hélder Gomes

Mustenser Qamar é imã em Wellington, capital da Nova Zelândia, mas a sua comunidade também tem membros em Christchurch, a cidade que esta sexta-feira foi alvo de ataques em duas mesquitas que provocaram pelo menos 49 mortos (balanço à hora de fecho desta edição). “É um tempo difícil para os muçulmanos no país, mas a grande maioria das pessoas está a desempenhar um papel importante através das suas mensagens de apoio, fazendo com que todos os muçulmanos se sintam acolhidos e seguros”, conta ao Expresso. “Pessoalmente, recebi chamadas e mensagens de deputados, dignitários, cristãos, judeus e pessoas de todas as proveniências, mostrando solidariedade com a comunidade muçulmana na Nova Zelândia”, acrescenta.

Os muçulmanos representam pouco mais de 1% da população neozelandesa, segundo os censos de 2013. Por outro lado, os crimes violentos são raros num país onde a polícia não costuma andar armada. Antes desta sexta-feira, o pior assassínio em massa remonta a 1990, quando um fanático por armas de fogo matou 13 pessoas na pequena localidade costeira de Aramoana. “Enquanto comunidade, compreendemos que estes extremistas não representam a maioria dos neozelandeses, do mesmo modo que os muçulmanos extremistas não nos representam. É importante unirmo-nos contra todas as formas de fanatismo e ódio”, recomenda o imã.

<span class="creditofoto">Foto EPA</span>

Foto EPA

A primeira-ministra, Jacinda Ardern, começou por referir que “este é um dos dias mais negros da Nova Zelândia” e que “claramente o que aconteceu aqui é um ato de violência extraordinário e sem precedentes”. Numa comunicação posterior, a chefe do Governo sublinhou que o sucedido “só pode ser descrito como um ataque terrorista”. “Muitos dos afetados são migrantes e refugiados. Esta é a sua casa. Eles são nós. Quem perpetrou isto não é.”

Testemunhas contaram à imprensa que um homem vestido com camuflado ao estilo militar e carregando uma arma automática disparou aleatoriamente sobre pessoas, muitas delas ajoelhadas e a rezar, na mesquita de Al Noor. A segunda mesquita atacada fica no subúrbio de Linwood. Ainda não é claro se os dois ataques foram realizados pela mesma pessoa. O que se sabe é que as autoridades prenderam quatro suspeitos (três homens e uma mulher).

O MANIFESTO DA “GRANDE SUBSTITUIÇÃO”

Um dos suspeitos chama-se Brenton Tarrant – a acreditar na conta de Twitter que usava e que entretanto foi apagada –, tem 28 anos e é australiano. Tarrant, que fez uma transmissão em direto de uma parte dos ataques através da Internet, já assumiu responsabilidade e está acusado de homicídio. Segundo o comissário da polícia neozelandesa, Mike Bush, Tarrant é presente a tribunal este sábado.

Brenton Tarrant assumiu a responsabilidade do ataque

Brenton Tarrant assumiu a responsabilidade do ataque

Antes do ataque, o suspeito escreveu um manifesto de 74 páginas, intitulado “The Great Replacement” – ou seja, “A Grande Substituição” –, e disponibilizou-o online. No documento descreve as suas motivações (“criar uma atmosfera de medo” e “incitar à violência” contra muçulmanos) e cita figuras que, segundo ele, “se posicionaram contra o genocídio étnico e cultural”. Entre eles encontram-se o terrorista de extrema-direita norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011, e Darren Osborne, que atropelou mortalmente uma pessoa no Finsbury Park de Londres, em 2017.

“Pelo que nos foi dado a entender, o principal perpetrador avaliou vários alvos potenciais onde poderia causar danos significativos aos muçulmanos e, em seguida, escolheu esta zona”, sintetiza Muhammad Nabeel Musharraf, representante da organização Círculo Islâmico da Austrália e Nova Zelândia. Em declarações ao Expresso, acrescenta: “O terrorista teria motivações raciais e a sua principal preocupação é uma cada vez menor população branca e uma maior taxa de fertilidade e crescimento da população não branca. É óbvio que foi um crime instigado pelo ódio”.

O empreendedor Khalid ibn Walid, que pertence ao grupo online “Muslims Against ISIS” (“Muçulmanos contra o Daesh”), conta, a partir de Newcastle, no Reino Unido, que “não é a religião que leva alguém a matar pessoas inocentes, é a vingança”. “A motivação deste homem foi a vingança, tal como foi esta a motivação para os ataques terroristas na Europa e noutras zonas do globo. O círculo do ódio continua a crescer e os seus pregadores, de ambos os lados, esfregam as mãos de contentes”, diz ao Expresso. “A verdade assustadora é que a ascensão da extrema-direita e do supremacismo branco é mundial. Já vimos este tipo de ataques ou tentativas semelhantes nos EUA, no Canadá e um pouco por toda a Europa”, concorda o defensor americano de direitos humanos Qasim Rashid.

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TRUMP, “SÍMBOLO DA IDENTIDADE BRANCA RENOVADA”

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, condenou o que classificou como “massacre horrível” e “ato cruel de ódio”. No seu manifesto, o suspeito identificado elogiou Trump, descrevendo-o como “um símbolo da identidade branca renovada e do propósito comum”. O documento citava ainda como motivação o “genocídio branco”, uma designação habitualmente usada por grupos racistas para se referirem à migração e ao crescimento de populações minoritárias. No texto, os migrantes são classificados como “invasores”.

“A comunidade muçulmana local está em choque e os ataques provocaram nela um enorme trauma”, resume Muhammad Nabeel Musharraf. “O terrorista estereotipou todos os muçulmanos, ignorando a grande diversidade que existe entre eles. Esta é uma das maiores causas de islamofobia no mundo em geral, e na Austrália e na Nova Zelândia em particular”, avalia o responsável regional do Círculo Islâmico. E conclui, sugerindo: “Os indivíduos e organizações que propagam o ódio e encorajam atos criminosos devem ser levados muito a sério pelo Governo. Se eles tiverem rédea solta, a situação pode rapidamente ficar descontrolada”.