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Michael Jackson: os meninos que ele usou e a história de um documentário que não parece sincero por mais que conte a verdade

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Foto d.r.

Em “Leaving Neverland”, dois homens adultos regressam à infância que passaram no rancho do “rei da pop” e acusam detalhadamente o autor de “Thriller” de abusos sexuais. Querem expurgar o seu passado. A prova que têm não é mais do que a do seu testemunho. É um filme controverso, disponível a partir desta sexta-feira na plataforma streaming HBO Portugal

Texto Francisco Ferreira

“Leaving Neverland” é um documentário televisivo de 4 horas produzido pelos canais Channel 4 e HBO, está dividido em duas partes e tem um objetivo: denunciar os abusos sexuais praticados por Michael Jackson. A história não é nova para ninguém - fez correr rios de tinta quando chegou aos media e aos tribunais norte-americanos.

O cantor foi publicamente acusado de pedofilia duas vezes, nos períodos de 1993-1994 e de 2002-2005. Na primeira garantiu a sua inocência, na segunda chegou a acordo financeiro com a alegada vítima (que não fala aqui). Os rostos dos protagonistas de “Leaving Neverland”, James Safechuck e Wade Robson, também não são desconhecidos: viveram vários anos com Michael Jackson na sua Neverland, esse rancho quase inacessível, tão mágico como uma Disneylândia. “It was a fairy tale every night”, diz um deles. Acompanharam o “rei da pop” em digressões, cada um deles teve o seu tempo áureo com a estrela – e outros meninos houve que foram prediletos.

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Foto d.r.

O que temos à nossa frente em “Leaving Neverland” são essencialmente talking heads, o testemunho de James e de Wade em grande plano, o das suas famílias (as mães deles, uma avó, um irmão mais velho...), cruzados com um manancial de fotos de arquivo e de vídeos respigados das mais diversas origens, ao longo de três décadas, do início dos anos 80 (desde o lançamento de “Thriller”, no termo de 1982) até à súbita morte de Michael Jackson, aos 50 anos, em 25 de junho de 2009.

E há muito a dizer do filme, que a HBO Portugal mostrou ao Expresso 48 horas antes da sua estreia portuguesa :

1) do escândalo e do problema ético-moral que está em jogo

2) do tom dos intervenientes e da sua complexidade psicológica – este filme de recalcamentos não está longe de tornar-se uma sessão de terapia

3) da atitude dos pais das vítimas, pois estamos a falar de crianças alegadamente abusadas por um homem de 30 anos que para elas era “um sonho”, James desde os dez anos, Wade desde os sete

4) por fim, da forma como o realizador Dan Reed filma James e Wade (o documentarista britânico volta a incidir no mesmo tema do seu trabalho de 2014, “The Paedophile Hunter”) - e aqui encontramos problemas de representação que, a priori, são puramente cinematográficos.

As denúncias dos dois homens

James Safechuck conheceu Michael Jackson em dezembro de 1986, ano em que foi a criança eleita para aparecer com a estrela num anúncio da Pepsi que se tornou célebre no ano seguinte. Acompanhou-o nos concertos, depois do lançamento do álbum “Bad”. A família ficou radiante quando o músico os convidou para uma viagem ao Hawai. James conta que os abusos começaram quando ele tinha dez anos e ainda guarda a caixa de joias com os anéis de ouro que eram a recompensa pelos seus favores – um deles premiou a simulação de um casamento com Michael. Hoje, James tem 41 anos.

Wade Robson, coreógrafo australiano, vinha, tal como James, de uma família da classe média que se deixou seduzir pelos rios de dinheiro do artista. Tem agora 36 anos, conheceu-o aos cinco porque o imitava e venceu um concurso de dança em Brisbane. “Ele [Michael] ajudou-me na minha carreira. E também abusou de mim. Durante sete anos”, assim começa o seu depoimento. O filme descreve as experiências de ambos na Neverland, os parques temáticos com elefantes, girafas e tigres, mas também os quartos privados, as portas fechadas. “E numa viagem a Paris, Michael iniciou-me na masturbação. E ao french kissing. Dizia-me que, se alguém descobrisse, a vida dele acabava e a minha também.”

Seguem-se outras descrições de ambos os homens, em montagem alternada: masturbação mútua, sucção de mamilos, sexo oral. Wade conta que só por uma vez, já este era adolescente, Michael Jackson tentou o sexo anal, e que recuou perante a dor daquele, acabando, como era seu hábito, a masturbar-se num canto da cama. Isto diz muito dos comportamentos e da psique do cantor e do seu eterno síndroma de Peter Pan.

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A ideia com que se fica é a de que Michael Jackson aliciava de mansinho, avançava com extremo cuidado, era um 'doce predador', por mais que isso, pelo menos a nível moral (a nível jurídico talvez não o seja), não o ilibe da monstruosidade que está aqui em causa.

Perguntas incómodas sobre “viajar para outro planeta”

Mas, já que estamos a falar deste assunto, há outro aspeto que não é menos monstruoso e que é importante salientar. No filme ouve-se o testemunho de Jennifer Safechuck e de Joy Robson, mães de James e de Wade. Como este último às tantas diz, partir para a Neverland era como “viajar para outro planeta.” E aqui perguntamo-nos: não perderam também aquelas famílias o 'contacto com a Terra' e a noção da realidade, no meio de tantos luxos e viagens a lugares paradisíacos? Não foram afinal estas criaturas as maiores responsáveis do que alegadamente aconteceu? Como é possível que tenham permitido que as suas crianças dormissem, uma e outra vez, na cama de um homem adulto, até que isso se tornasse rotina de meses e anos, sem nunca desconfiarem de nada?

Nesta catarse controlada que é “Leaving Neverland”, o filme reservará, para uma e outra mãe, um momento de mea culpa. Para o espectador, a sensação que fica a pairar é outra: a de que a história que envolve as famílias dos pais de James e de Wade não está bem contada.

E O DOCUMENTÁRIO, NÃO MENTE?

A parte final de “Leaving Neverland” tem o cuidado de sugerir que James e Wade estão a lutar contra os seus demónios de uma forma ainda tensa, mas já apaziguada, como se todos estes anos que passaram tivessem sido necessários até eles enfrentarem uma câmara - ou melhor, este 'confessionário'.

O filme sublinha que são ambos pais de família, dá-nos também depoimentos das mulheres de um e de outro, ambos têm vidas aparentemente estáveis, dentro do que lhes é possível. Toda a gente no filme (coisa algo estranha) trata Jackson por “Michael”, como alguém que foi, e ainda está, efetivamente próximo. Não se nota, jamais, qualquer manifestação de ódio, rancor, ou vingança.

Do outro lado, está o homem que eles endeusavam, um dos maiores artistas pop de todos os tempos, e que deixou uma colossal fortuna que continua a ser alimentada por direitos de autor. “Leaving Neverland” sabe também que está a lidar com isto.

A resposta da família Jackson não tardou, de resto: acusaram o filme de ser um “linchamento público” e processaram a HBO em 100 milhões de dólares. E na era do #MeToo, já há rádios e televisões, do Canadá à Nova Zelândia, que estão a banir, por causa deste filme, todas as canções de Michael Jackson das suas playlists.

Por outro lado, James e Wade estão numa posição de desconforto tremendo, não só porque falam em pormenor do que lhes aconteceu na intimidade, mas porque em tempos, quando Jackson foi acusado de abusos – e são eles quem agora assume essa culpa – mentiram em tribunal para defender a estrela. Mentiram, já adultos, de modo descarado e com a conivência das suas famílias, as mesmas que Michael Jackson, por arrasto, habituou a uma vida de luxos. Ou seja, o que Dan Reed nos vem dizer nas entrelinhas é que há uma verdade para ser reposta agora, dez anos depois da morte de Michael Jackson. Só que, do ponto de vista legal e jurídico, esta é uma verdade sem contracampo (e o artista já não está cá para se defender). É palavra contra a palavra de quem já não a tem – e nada mais.

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Que o filme não tem provas contra Michael Jackson, é um facto. E aqui perguntamo-nos outras coisas: pode um filme ter a missão e a responsabilidade de substituir a barra dos tribunais? Não pode, nem deve... Entramos em terreno movediço e isto é interessante. Mais: porque passa o filme ao lado de toda a investigação aos crimes sexuais de Michael Jackson feita pelas autoridades norte-americanas?

Não estamos a falar propriamente de pormenores, nem de investigações policiais em repúblicas de bananas: o FBI investigou Jackson por mais de dez anos. Há páginas e páginas de relatórios sobre essas pesquisas secretas – e que o ilibaram. Para o filme, isto não é assunto? Não se percebe. No seu mais recente trabalho, “Grâce à Dieu” - uma reconstituição dos crimes de pedofilia que assolaram a Igreja Católica em Lyon sob o ponto de vista das vítimas -, o francês François Ozon documentou-se, ouviu quem tinha que ouvir e entregou a atores os papéis do seu filme. Ou seja, fez exatamente o contrário de Dan Reed.

“Leaving Neverland” é um filme muito cruel para Michael Jackson. E é o filme da sua crueldade. Reed vinca de tal forma o ponto de vista dos que falam que não admite, nem por um segundo, esboçar a mínima hipótese de defesa para o autor de 'Billy Jean'. Para o espectador, não é fácil dizer que James e Wade não estão ali, preto no branco, a contar a verdade. E contudo, começa-se a suspeitar que “Leaving Neverland” pode ser uma fraude pela própria estrutura do filme em si. Os depoimentos dos intervenientes são sempre gravados separadamente. Mas o que é curioso notar é que o fascínio e o tom meloso e emocional de cada discurso tende a ser comum, minimal e repetitivo, até à exaustão. A espontaneidade dos depoimentos é reduzida a zero. Como se todos eles estivessem a seguir um guião cinematográfico. Ou a repetir uma take que ficou mal, até esta chegar ao tom certo. E o espectador aqui, desconfia.

Vamos lá tornar as coisas claras: não podemos afirmar que este filme é um embuste e que James Safechuck e Wade Robson estão a mentir para a câmara. Eles não são 'atores' suficientemente dotados para nos convencerem disso. E aquilo que dizem está demasiado perto do osso. O que estamos a dizer é que, se alguma vez o documentário aspirou a ter em si uma caução de verdade sobre alguma coisa concreta, “Leaving Neverland” fica a milhas dessa objetivo. Pura e simplesmente, é um filme que se gera de uma acumulação de ambiguidades. De uma construção de relatos subjetivos. É um documentário que não faz o seu trabalho.


Talvez tudo o que se diz em “Leaving Neverland” seja verdade. Talvez James e Wade não tenham, de facto, podido ser os narradores das suas próprias histórias como o são agora. Acontece que este filme não é, contas feitas, capaz de os defender. E deixa um estranho efeito: saímos das quatro horas de projeção como se tivéssemos acabado de sair de uma ficção. “Leaving Neverland” não tem poder para deitar abaixo uma estrela.