
A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
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A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
A guerra vem através da democracia
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A civilização está no tal “défice democrático”
A Índia e o Paquistão regressaram a um estado de tensão bélica. Pelo menos na Índia, este desejo de guerra é alimentado por grande parte da população, pelos média e pelas óbvias redes sociais. É o povo, ou parte do povo, que deseja a guerra. Na China sabe-se há muito que a elite dirigente é menos bélica e nacionalista do que o povo. Na Rússia o belicismo de Putin tem o apoio de grande parte da população. É infantil a ideia de que as guerras começam devido à maldade ou interesse de um ditador ou de uma sala secreta de privilegiados. As guerras começam porque são validadas democraticamente pelos povos, que anseiam por elas.
Sem o travão dos instrumentos aristocráticos e elitistas da República, a democracia atira-nos para o ódio racista e nacionalista e, por fim, para a guerra. Foi sempre assim. Está a ser assim
A seguir à guerra civil americana (outra guerra festejada e desejada no seu início por grande parte da população), uma Washington ainda republicana, liberal e aristocrática, digamos assim, tentou a reconstrução e a redignificação de todos os habitantes americanos. Como recorda Jill Lepore na “Foreign Affairs”, a 14.º e a 15º emendas constitucionais são deste período e procuraram dar direitos de cidadania aos chineses e aos negros. Mas, entretanto, surgiu a democracia popular (mass politics): todos os homens passaram a votar, e não apenas os “cavalheiros” (a velha República). O advento da democracia total representou a validação do ódio através das leis de segregação do sul (Jim Crow) e do Chinese Exclusion Act.
Podia passar o dia a dar mais exemplos que confirmam a grande lição para o nosso tempo: sem o travão dos instrumentos aristocráticos e elitistas da República, a democracia atira-nos para o ódio racista e nacionalista e, por fim, para a guerra. Foi sempre assim. Está a ser assim. A urna e as redes sociais são antecâmaras da guerra.