
A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
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A tempo e a desmodo
Henrique Raposo
O inverosímil normal
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Ler uma biografia ou romance sobre o período imediatamente posterior à II Guerra Mundial pode ser mais chocante do que ler algo sobre a guerra ou campos da morte. Isto porque estamos à espera de um certo de tipo de atitude, por exemplo, estamos à espera de um mea culpa sobre o antissemitismo. Não é o caso. A reflexão e a contrição em relação aos judeus esteve longe de ser imediata e fácil. A biografia de Simon Wiesenthal, “O Maior Caçador de Nazis da História”, de Tom Segev, revela-nos de novo esta negação da realidade e da moral.
Quando se instala na Áustria a seguir à guerra, Wiesenthal continua a ver antissemitismo explícito nos austríacos, como se nada se tivesse passado, como se os austríacos não tivessem aderido o nazismo, como se os austríacos não tivessem acorrido em massa às SS. A culpa foi dirigida apenas e só para a Alemanha; a Áustria encarou-se a si mesmo como mais uma das vítimas do nazismo. A Áustria, logo a Áustria: terra que acolheu o Anschluss, terra natal de Hitler, terra natal de um terço dos guardas dos campos, terra onde o antissemitismo continuou a ser moeda corrente depois da guerra.
Em 2019, também parece mentira vermos artistas e líderes políticos, à esquerda e à direita, completamente enamorados pela velha retórica antissemita. Mas eles estão aí e o cenário vai piorar antes de melhorar
Importa recordar esta história, porque o inverosímil é muitas vezes a realidade. Vendo a história a partir de 2019, o cenário traçado por Segev até parece mentira. Como é que em 1950 o antissemitismo continua presente no discurso privado e público dos austríacos? Em 2019, também parece mentira vermos artistas e líderes políticos, à esquerda e à direita, completamente enamorados pela velha retórica antissemita. Mas eles estão aí e o cenário vai piorar antes de melhorar.