Teatro

Ricardo Pais regressa com tragédia sobre o poder da comunicação

Ricardo Pais regressa com a peça “Oleanna”, de David Mamet, com estreia a 21 de fevereiro <span class="creditofoto">FOTO Rui Duarte Silva</span>

Ricardo Pais regressa com a peça “Oleanna”, de David Mamet, com estreia a 21 de fevereiro FOTO Rui Duarte Silva

“Oleanna”, de David Mamet, provoca o reencontro do encenador com o teatro e é um dos temas em foco numa grande entrevista a publicar este sábado na Revista do Expresso

Texto Valdemar Cruz

Ricardo Pais regressa aos palcos com uma tragédia. Não apenas por “Oleanna”, a peça de David Mamet estreada em 1992 no Massachussets, nos EUA, ser concebida a partir de uma sábia utilização e manipulação dos elementos clássicos de uma tragédia. Também por pairar sobre todo aquele encontro claustrofóbico entre duas personagens, um professor e uma aluna, uma forte dimensão trágica no modo como são equacionadas questões cada vez mais atuais. Questões sobre assédio sexual, sobre poder, sobre diferenças de classe. Sobre a linguagem.

Este sábado, a Revista do Expresso publica uma entrevista ao encenador, que fala da sua falta de esperança no país, da excessiva burocratização do Estado, dos parcos hábitos culturais dos portugueses, ou da péssima qualidade dos atores criados nas televisões. Tudo isso o leva a ter uma relação quase conflituosa com a ideia de permanecer ou não ligado ao teatro. Termina a entrevista com uma dúvida metódica: “Sempre afirmei que não respiro só teatro. A questão é: devo parar de fazer teatro ou não? Está visto que não consigo responder”.

Mafalda Lencastre e Pedro Almendra (foto de ensaio) <span class="creditofoto">Foto João Tuna</span>

Mafalda Lencastre e Pedro Almendra (foto de ensaio) Foto João Tuna

De tal ordem não consegue que, inclusive, se entregou agora por inteiro à aventura de produzir “Oleanna” sem qualquer apoio e apenas com os seus próprios recursos. Muitos dos seus amigos e conhecidos têm estado a receber uma carta assinada por Ricardo Pais. Explica-lhes ali o projeto e incentiva-os a comprarem bilhete para poderem assistir, entre 21 de fevereiro e 17 de março, a uma das récitas no Estúdio Latino do Teatro Sá da Bandeira, no Porto. Em palco estarão, como personagens, Mafalda Lencastre, Pedro Almendra e um telefone.

Juntam-se num projeto singular, bem explícito na desconcertante frase incluída no cartaz de divulgação do filme, também dirigido por Mamet, estreado em 1994, dois anos após a primeira apresentação da peça: “O professor diz que era apena uma aula, ela diz que é assédio sexual, mas seja o que for que pense, está enganado”.

Ricardo Pais sublinha que não se pode chamar assédio sexual “àquilo que nós próprios vemos, porque passa-se à nossa frente”. E o que se passa é o confronto que envolve John, um professor na iminência de assegurar “nomeação definitiva” pelo Conselho Científico da faculdade onde leciona. Se tudo correr como está a prever, dá mais um passo na escada da ambicionada ascensão social.

Depois há Carol. É uma aluna com personalidade em construção. Confronta-se com dificuldades de compreensão das matérias lecionadas, à mistura com muitas dúvidas existenciais. Deste encontro, ou desencontro, escreve-se no programa desta versão de “Oleanna” traduzia por Pedro Mexia, “nasce uma relação de crescente dissonância e atonia frequente, feita de verdadeiros monólogos paralelos, que se tocam e chocam de frente, desequilibrando a tradicional dinâmica hierárquica professor/aluna, mas também, e talvez de forma mais marcante, a relação homem/mulher”.

Ricardo Pais continua a desenvolver projetos teatrais <span class="creditofoto">FOTO Rui Duarte Silva</span>

Ricardo Pais continua a desenvolver projetos teatrais FOTO Rui Duarte Silva

Ricardo Pais vê em “Oleanna” abordagens da “liberdade de discurso”, bem como todos os grandes temas da discussão “que parte um pouco historicamente da América, mas se espalha pelo mundo todo, e estão ali”. Mas já estavam em 1992 quando a peça foi escrita. David Mamet, prossegue o encenador, “insiste em que é uma tragédia, em que duas pessoas se destroem, porque nenhuma delas consegue perceber – principalmente o homem – que traz dentro dele o estigma da peste que mata Tebas”.

A chegada, agora, a “Oleanna” não resulta de uma questão de oportunidade, opção que nunca foi determinante nas escolhas de Ricardo Pais. De resto, afirma, “é porque justamente ultrapassa muito esse limite” que se interessou por um texto que viu pela primeira vez em 1994 em Lisboa, com encenação de João Lourenço, com interpretação de Francisco Pestana e Teresa Madruga. Naquela altura não percebeu a peça, confessa. Porque, diz, “o estilo do Mamet é diabolicamente difícil. A peça é altamente polémica. Gera sempre discussões altamente malucas por todo o lado. Penso que as últimas versões já não são tanto assim. As questões de género são abordadas pela rapariga, mas muito levemente”.

Mamet, refere Ricardo Pais, “esconde-se tremendamente atrás das palavras. O discurso é uma coisa autónoma para ele. Tem uma ideia perfeitamente realista do conflito. Por detrás a construção é toda de um drama de caráter mais ou menos realista”, embora o estilo não o seja realmente. Isto apesar de passar “por todas noções típicas, cena a cena, conversa a conversa, de uma peça realista. Na verdade, o que se passa é uma espécie de fricção sistemática entre os discursos, de adiantamento do discurso que passa um palmo à frente da boca, praticamente”.

Um discurso que, percebe-se, “nunca está exatamente centrado no corpo. Até um determinado momento, que é o momento final na peça. Com imensas sobreposições, com uma consciência muito clara da dificuldade de comunicação de certas classes. Seja por excesso de qualidade, ou por pose, como é o caso do professor, seja por dificuldades da própria Carol, que só são ultrapassadas quando entra na linguagem do grupo dela. Isto é, do grupo ideológico que a conduz através do processo todo, que a doutrina, e lhe impõe a linguagem autocrática e autoritária”.

De novo o poder da linguagem a impor-se, com Ricardo Pais a vincar a importância desse poder e das “dificuldades em chegar lá”. Na opinião do encenador há, “entre os intelectuais portugueses, casos absolutamente flagrantes de abusos do poder da linguagem. O conhecimento considera-se uma coisa que confere autoridade”.

Mafalda Lencastre é Carol, a aluna. Pedro Almendra é John, o professor (foto de ensaio) <span class="creditofoto">Foto Júlio M.</span>

Mafalda Lencastre é Carol, a aluna. Pedro Almendra é John, o professor (foto de ensaio) Foto Júlio M.

Fascinou-o a ideia de tentar perceber como é que “se consegue suster esta coisa, principalmente quando há uma transformação tão radical na personagem principal”. Que não é Oleanna. O nome da peça remete, explica Ricardo, para um projeto utópico de uma comunidade agrária desenvolvido por um norueguês. O cantor folk Pete Segger tem uma canção sobre aquele projeto, elaborada a partir de um tema popular norueguês. Durante muito tempo, David Mamet colocava no prefácio uma quadrada canção cantada por Pete Segger sobre esse projeto.

Para Ricardo Pais, “Olleana é um título completamente obtuso”. E é-o de tal ordem que, durante mais de vinte anos, o encenador julgou ter ido “ver a Oleanna com a Teresa Madruga no papel de Oleanna, quando ela estava no papel da Carol, de facto. São despistes que Mamet faz muito sistematicamente nas suas obras. Tem sempre uma qualquer coisa escondida. Guarda a revelação por detrás de um conflito aparentemente normal. A grande revelação, neste caso, é a violência da luta física com que termina a peça”.