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A estrela do streaming aspira clientes e queima dinheiro como ninguém

A empresa de streaming apresentou os resultados de 2018 e do último trimestre do ano esta quinta-feira <span class="creditofoto">Foto Mike Blake / Reuters</span>

A empresa de streaming apresentou os resultados de 2018 e do último trimestre do ano esta quinta-feira Foto Mike Blake / Reuters

Tem 139 milhões de subscritores, o que faria dela, se fosse um país, o décimo mais populoso do mundo. A plataforma Netflix apresentou resultados esta quinta-feira (depois de ter anunciado um aumento dos preços) e deixou os investidores confusos. O número de clientes aumentou, as receitas também, mas estas últimas não tanto quanto os analistas esperavam. Alguns dizem que está com ‘dores de crescimento’. Será?

Texto Maria João Bourbon

Há quem lhe diga que tem uma estratégia irracional. Isto porque a Netflix é mais ou menos aquilo que na gíria popular se chamaria uma ‘mãos largas’: não olha a custos para atingir os fins, o que fez com que 2018 fosse o quarto ano consecutivo da plataforma de streaming queimar dinheiro. E a pedir mais dinheiro emprestado do que aquele que gerou.

Mas há quem veja alguma racionalidade financeira nesta estratégia aparentemente irracional.

É verdade que nos últimos quatro anos o fluxo de caixa livre (dinheiro disponível depois de realizados todos os pagamentos obrigatórios) tem estado no vermelho e a diminuir, alcançando os três mil milhões dólares negativos no ano passado. É igualmente conhecido que a dívida da empresa já está nos 32 mil milhões de dólares (28 mil milhões de euros).

Mas a Netflix tem usado essa dívida para financiar a enorme aposta nos conteúdos (incluindo não só séries, mas também filmes originais como “Bird Box” e “Roma”) e agarrar as pessoas ao ecrã: a empresa gastou este ano 13 mil milhões de dólares (cerca de 11 mil milhões de euros).

O que a Netflix está a fazer, como sublinhou recentemente a Bloomberg, é “tirar partido de um momento único em que a concorrência é relativamente medíocre, as visualizações de vídeos em streaming estão a explodir, os empréstimos são baratos e os investidores ficam felizes ao deixar a Netflix ser financeiramente irracional”, desde que a empresa cumpra as suas expetativas de crescimento. A ideia é simples: angariar o máximo de clientes agora e preocupar-se com a dívida e os resultados mais tarde, quando estes já estiverem fidelizados.

“A Netflix fez um acordo com os investidores”, complementa ao Expresso o escritor e especialista em tecnologia Peter Cohen. “Eles fazem subir o preço das ações da empresa se as receitas crescerem mais rápido do que aquilo que os analistas esperam. Se o preço de mercado aumentar, a Netflix pode sempre vender mais ações sem muita perda para financiar mais gastos. O risco é que não consiga continuar a crescer rapidamente - e assim o preço das ações vai cair e provavelmente vai ter que começar a dar lucro.”

Resta saber se, face aos resultados apresentados pela empresa na quinta-feira, os investidores têm motivos para ficar descansados.

A Netflix tentou acalmá-los com o alargamento da base de clientes. Tem agora um total de 139 milhões de subscritores pagos, depois de ter angariado 8,84 milhões de clientes (líquidos) só no último trimestre do ano. Se fosse um país, seria o décimo mais populoso do mundo.

(Em Portugal não se sabe o número total de subscritores, uma vez que a empresa não os revela. E os dados disponíveis mostram apenas os acesso à plataforma apenas através do computador: segundo dados de dezembro da Marktest, 369.400 indivíduos acederam no computador a páginas com o domínio netflix.com. O estudo Bareme Internet de 2018 indica ainda que, quando questionados se viram filmes e séries nos últimos 30 dias, 597 mil pessoas responderam que os viram na ‘Netflix’. Além dos números, temos também as raras declarações da empresa sobre o país que, por intermédio de Yann Lafarge, diretor de tecnologia e comunicação para a região da Europa, Médio Oriente e África, recordou no verão passado que as orientações da Netflix para os Estados Unidos são as mesmas que para o mercado português: atingir, ao fim de sete anos, 30% do mercado. “Estamos no caminho certo para isso”, sublinhou, acrescentando que a oferta de conteúdos em 2018 era “cinco vezes maior do que em outubro de 2015”.)

Aumento de preços não chegou a Portugal. Mas nada está garantido

O ritmo acelerado de captação de clientes, no entanto, não dura para sempre. No primeiro trimestre de 2019, por exemplo, a empresa espera angariar 1,6 milhões de novos subscritores pagos nos Estados Unidos, menos que os 2,3 milhões que foram angariados no mesmo período do ano passado. Segundo a Bloomberg, a empresa que quer crescer a todo o custo está com dores de crescimento.

O aumento da base de subscritores em 2018 não parece ter sido suficiente para fazer subir as receitas ao ritmo esperado pelos investidores para o último trimestre do ano. Apesar disso, no acumulado do ano estas ultrapassaram os 15,8 mil milhões de dólares (13,9 mil milhões de euros) — e aumentaram 4,1 mil milhões de dólares (3,6 mil milhões de euros) face a 2017 —, o que não deve ser menosprezado.

<span class="creditofoto">Foto Getty</span>

Foto Getty

“O facto dos investidores reagirem negativamente àquilo que é um grande desempenho [com uma queda nas ações da empresa logo após a apresentação de resultados] mostra a extensão da fasquia colocada pela Netflix”, acredita o analista da eMarketer, Paul Verna, citado pela Yahoo Finance.

Se é natural que o ritmo de crescimento vá abrandando ao longo do tempo, há outra variável que vai entrar também nesta equação: o aumento do preço das subscrições anunciado há dias pela empresa, que passam a custar entre 8,99 dólares e 15,99 dólares em função do tipo de subscrição. Com uma subida entre 13% e 14% na fatura dos utilizadores, este é o maior aumento de sempre nos preços da plataforma.

Para já, o aumento de preços - que será introduzido de forma faseada no início do ano — abrange apenas os clientes dos Estados Unidos e de alguns países da América Latina e Caraíbas que pagam em dólares. Mas nem por isso Portugal pode respirar de alívio: o último aumento de preços, no final de 2017, também abrangia apenas os Estados Unidos, mas foi alargado meses depois ao mercado português.

Alguns analistas considere que a plataforma de streaming está a brincar com o fogo, correndo o risco de perder clientes. Um inquérito, realizado esta quarta-feira a uma população de 607 indivíduos pelo site Streaming Observer e a Mindset Analytics, concluiu que 24% dos subscritores ponderavam cancelar a sua subscrição face ao aumento de preços anunciado pela Netflix (mas apenas 3% tinham a certeza).

Outros acreditam que o aumento de preços não é tão elevado para prejudicar os resultados da empresa. “As pessoas ficam viciadas em séries específicas que passam na Netflix e em outros serviços como a HBO”, explica ao Expresso o escritor e especialista em tecnologia Peter Cohen.

“A Netflix tem igualmente o seu próprio conteúdo — como a série ‘Orange is the New Black’. Muitas pessoas ficam viciadas nessas séries e não as conseguem ver noutro lugar”, continua. “Claro que podem encontrar outras opções e serviços, mas uma vez presas querem pagar para continuar a assistir. O aumento de preço não é tão elevado que leve as pessoas a deixarem o serviço.”

A Netflix deve, por isso, continuar a aposta nos conteúdos originais e locais. “Penso que a estratégia é boa enquanto continuar a desenvolver conteúdos que prendam as pessoas”, acrescenta. E, ao que parece, é o que quer fazer.

Quem tem medo da Apple ou da Disney?

Será que, com esta estratégia, a Netflix tem o futuro assegurado? E que os resultados apresentados esta quinta-feira são bons passos nesse sentido, num contexto em que a concorrência nos serviços de streaming é cada vez maior e que os utilizadores começam a ter novas opções?

Embora já enfrente a concorrência de serviços como a Amazon Prime Video, Hulu, YouTube e HBO Go, muitos analistas acreditam que este é o momento certo para a Netflix aumentar os preços, antes da entrada no palco de novas empresas como a Walt Disney, a Apple e a WarnerMedia (a divisão de media da At&T), prevista para este ano.

Segundo sublinha Peter Cohen num artigo de opinião, a Netflix “é melhor que os seus rivais na criação de novos conteúdos que agarram a atenção dos utilizadores”. E a empresa já veio mostrar que não tem medo destes concorrentes.

“O nosso foco não é o Disney+, a Amazon ou outros, mas a forma como podemos melhorar a experiência dos consumidores”, sublinhou na sua carta aos acionistas. “Nós competimos com (e perdemos para o) Fortnite [plataforma de videojogos] mais do que com (e para) a HBO. Existem milhares de concorrentes neste mercado altamente fragmentado a lutar para entreterem os consumidores.”

A afirmação parece dar o tom para o futuro da plataforma de streaming, colocando o gaming — um segmento de enorme crescimento a nível mundial — no centro da sua estratégia. E, sendo ambiciosa e podendo alargar os seus horizontes, leva-a a um mercado ainda mais vasto, alargando a concorrência e aumentando a pressão sobre a empresa.