EUA

Morreu uma lenda

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Foto Getty Images

Tinha 112 anos, mantidos serenamente e sem dispensar os seus charutos favoritos - dizia que sabia fumar de “forma saudável”. Combateu na Segunda Guerra Mundial e preferia falar da paz quando lhe pediam histórias de combate. Richard Overton era o mais velho veterano dos Estados Unidos

Texto Mafalda Ganhão

Poucos viverão o suficiente para gozar o privilégio de morar numa rua com o seu próprio nome e na tarde desta quinta-feira morreu um homem a quem foi dada essa honra - ainda que ele nunca se tenha gabado disso. Aos 112 anos, Richard Overton era o mais velho militar ainda vivo a ter participado na Segunda Guerra Mundial, mas era acima de tudo - garante quem o conheceu - um homem simples, de bem com a vida e pouco dado a vaidades.

Até ao dia em que a saúde o permitiu (a pneumonia que o levou obrigou a que passasse a última semana de vida internado), não abdicou de cumprir com zelo as suas rotinas diárias, que passavam por beber várias chávenas de café logo pela manhã, apreciar um ou outro whisky e fumar os seus charutos favoritos sentado no alpendre, à porta da casa que construíra há mais de 60 anos. Cigarros fumava cerca de 12 por dia, mas gostava de explicar que o fazia “da forma saudável”, ou seja, “sem inalar e sem nunca engolir o fumo, coisa que não permite sentir qualquer sabor”. “Só faz tosse.”

Segredo? “Continuar vivo”

O veterano de guerra transparecia serenidade e era jovial o sorriso que com frequência lhe chegava ao rosto - quase sem rugas, apesar da idade -, pontuando o discurso que manteve discernido até ao fim, como ficou gravado no documentário que em 2015 lhe foi dedicado, “Mr Overton”.

Um homem simples, de facto, cujo segredo para a longevidade se limitava ao irónico lema “continuar vivo”, ainda que reconhecesse não saber porque Deus o foi mantendo. “Há quem diga que me mantém por cá para ajudar os outros, mas posso dizer-vos que não sei a razão. Eu nunca Lhe perguntei e Ele nunca mo disse”, afirmou aos realizadores do documentário, Rocky Conly e Matt Cooper.

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Richard Overton nasceu a 11 de maio de 1906, em Bastrop, no estado do Texas. Neto de um escravo, cresceu durante um dos mais negros períodos históricos dos EUA, trabalhou em fábricas de móveis e nos correios, casou duas vezes mas não teve filhos. Ao Exército chegou aos 30 anos, quando se alistou como voluntário. Cerca de um ano depois, em 1941, foi enviado para o Havai, logo depois do devastador ataque surpresa das forças japonesas em Pearl Harbor.

Entre 1942 e 1945 esteve ao serviço do 1887ª Batalhão de Aviação de Engenheiros. Em missões em Palau, na Micronésia, e Iwo Jima, no Japão, testemunhou muito da Grande Guerra e costumava pensar nela “todos os dias”, mas não gostava especialmente de falar no tema. “Não foi nenhuma brincadeira”, confidenciou numa entrevista recente.

A igreja, “um lugar maravilhoso”

Em “Mr Overton”, filmado quando tinha 109 anos, o velho militar admitiu que o Exército tem vantagens, “faz-te mais forte e corajoso” a ponto de, como ele, “se poder dormir com as portas abertas, sem medo”. Mas foi mais expansivo ao falar das outras coisas que o faziam feliz. Como frequentar a igreja, “um lugar maravilhoso onde se aprende como tratar as pessoas”.

“Ainda ando, ainda converso, ainda conduzo”, dizia, orgulhoso por ter passado em todos os testes necessários para a recém-obtida renovação da carta de condução. O documentário mostra planos da sua casa, com uma sala acolhedora, onde os sofás floridos aparecem cobertos com coloridas mantas de crochê e nos móveis se podem ver múltiplas molduras, além de um rádio e uma televisão muito velhinhos: “Não sou de comprar uma coisa e depois outra e outra... Quando compro um artigo é para o usar até ao fim e nem me falem de cartões de crédito. Comprei sempre tudo com dinheiro na mão”.

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No ano passado, a casa antiga, onde a bandeira americana se manteve hasteada no relvado exterior, sofreu uma renovação. A saúde de Overton foi cedendo, a ponto de precisar de assistência diária e onerosa, mas os familiares sabiam que retirá-lo do seu espaço era apressar-lhe a morte. Quando recusou ir para um lar suportado pelo Departamento para os Veteranos, os familiares nem tentaram convencê-lo do contrário. Criaram em vez disso um fundo, na tentativa de obter os donativos suficientes para financiar os custos com o apoio domiciliário e a assistência médica - cerca de 13 mil euros/mês - e mobilizaram-se para melhorar as condições da casa na rua Richard Overton, Austin, que ganhou um ar mais moderno e seguro.

Overton ficou feliz, como ficara anos antes, em 2013, quando o Presidente Obama o homenageou no Dia dos Veteranos de Guerra.

Já depois de confirmada a morte, o governador do Texas, Greg Abbott, considerou-o “um ícone americano e uma lenda do Texas”: “Com a sua sagacidade e espírito gentil, ele tocou a vida de muitos e estou profundamente honrado por tê-lo conhecido”.

Há menos de um ano, o jornalista Ryan Holiday, do “Observer”, visitou Overton. Sob o título “O que eu aprendi sentado no alpendre com o veterano vivo mais velho da América”, escreveu um artigo dividido numa espécie de ‘mandamentos’. Perguntou a Richard Overton se tinha conselhos para dar aos jovens. Ele ficou indeciso mas, perante a insistência, respondeu apenas: “Nunca se metam em sarilhos”. E por fim lembrou Sócrates, o filósofo grego, para concordar que é mais sábio o homem que sabe nada saber.

“Penso que é essa a verdadeira lição de envelhecer, uma certa humildade e indiferença. A aceitação dos outros e de que eles irão encontrar os seus próprios caminhos, sem precisarem de moralismos. Além disso, manter-nos vivos é uma tarefa a tempo inteiro.”