REINO UNIDO

Theresa May foi ao Parlamento defender o Brexit. Mas só Nicky a apoiou (e por outro motivo)

De nenhum lado parece vir apoio suficiente ao pacto alcançado por May em Bruxelas <span class="creditofoto">Foto REUTERS</span>

De nenhum lado parece vir apoio suficiente ao pacto alcançado por May em Bruxelas Foto REUTERS

A primeira-ministra britânica apresentou esta segunda-feira aos deputados o pacto que alcançou com os 27. Só ao fim de uma hora e após dezenas de intervenções no debate se ouviu uma deputada a exprimir-lhe apoio

Texto PEDRO CORDEIRO

Chegou à Câmara dos Comuns do Parlamento britânico o pacto para sair da União Europeia de que ninguém gosta. Foi a primeira-ministra do Reino Unido quem o reconheceu, ao explicar: “Nem nós nem a UE estamos inteiramente satisfeitos, mas é assim que deve ser. Se uma das partes estivesse contente, não teria incentivo para avançar para a fase seguinte”.

“A primeira-ministra pode ter conseguido o apoio de 27 líderes estrangeiros, mas perdeu o do país”, acusou o líder da oposição, o trabalhista Jeremy Corbyn. Foi um de muitos, de várias bancadas, a reprovar o acordo. À hora de fecho deste texto, o debate durava há mais de uma hora e, das dezenas de intervenções ouvidas, só uma deputada, a conservadora Nicky Morgan, saíra em sua defesa. Em todo o caso, esta deputada explicou o voto favorável não pelos méritos, mas como forma de evitar uma saída desordenada.

Theresa May apresentava aos deputados o resultado das suas negociações com Bruxelas, que culminaram no Conselho Europeu deste domingo. Há acordo para o Reino Unido sair da União Europeia no dia 29 de março de 2019. São 585 páginas para selar um divórcio, que prevê mais 21 meses de período de transição. Existe ainda uma declaração política de 26 páginas com boas intenções para a relação futura. O que não há é consenso nas bancadas de Westminster para apoiar o plano.

Um dos maiores críticos de May no Partido Conservador, Boris Johnson, aplaudiu-a por reconhecer o descontentamento geral, mas com farpa: “É um pouco eufemístico”, disse o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, que abandonou o Executivo há meses por discordar do ‘Brexit’ gizado pela líder e é considerado um aspirante ao lugar de May. A proximidade à união aduaneira prevista no acordo impedirá o país de forjar novos acordos comerciais independentes, argumenta. As promessas de prosperidade não foram ajudadas por um estudo divulgado esta segunda-feira que equipara o prejuízo causado pela saída da UE com a hipotética perda, para o PIB britânico, do País de Gales ou da City londrina.

A incontornável Irlanda

A governante conservadora alongou-se ao falar da questão mais controversa do documento: a solução de recurso conhecida como backstop, estabelecida para evitar em todas as circunstâncias o regresso a uma fronteira física entre a Irlanda do Norte (um dos quatro países que formam o Reino Unido) e a vizinha República da Irlanda (membro da UE), palco de conflito sangrento no século XX. Frisando que “não pode haver acordo sem backstop”, May reconheceu as preocupações dos eurocéticos em relação ao mesmo.

Nem Londres nem Bruxelas querem que o backstop seja usado, repetiu. Isso só sucederá, nos termos do acordo, se até ao fim do período de transição do ‘Brexit’ (30 de dezembro de 2020) não for possível encontrar forma de realizar os necessários controlos fronteiriços — uma vez que o Reino Unido abandona o mercado único e a união aduaneira — sem infraestrutura física. O problema é que de momento não há resposta a esta questão. Se ela não surgir até junho de 2020, os britânicos terão de escolher o que fazer daí a seis meses: adotar o backstop ou prolongar o período de transição.

O mais provável, no atual estado de coisas, é a Câmara dos Comuns chumbar o acordo quando ele for a votos, em dezembro <span class="creditofoto">Foto ANDY RAIN/EPA</span>

O mais provável, no atual estado de coisas, é a Câmara dos Comuns chumbar o acordo quando ele for a votos, em dezembro Foto ANDY RAIN/EPA

Esta última hipótese, rejeitada pelos mais fervorosos ‘Brexiters’, implicaria novas contribuições para o orçamento comunitário, além dos quase 50 mil milhões de euros acordados como tarifa de saída (correspondentes a compromissos anteriormente assumidos). May acredita que não se chegará a tanto, mas reconhece que, caso o backstop chegue a ser aplicado, só se pode sair dele por consenso entre o Reino Unido e a União Europeia. David Davis, ex-ministro da Saída da UE que se demitiu em julho por discordar do rumo escolhido por May, defendeu que o pagamento dos 50 mil milhões devia ser condicional à não utilização do backstop.

O sucessor de Davis no Governo, Dominic Raab, que também renunciou há semanas, defendeu esta semana que embora ele próprio seja a favor da saída, permanecer na UE seria melhor do que aceitar o acordo de May. A também eurocética Kate Hoey, trabalhista, diz que nos termos propostos por May “não se retoma o controlo”, lembrando um dos lemas dos apoiantes da saída no referendo de 23 de junho de 2016. May defendera minutos antes que sair da política agrícola comum e da política de pescas comunitária são passos a favor da soberania britânica. Outros deputados censuraram a manutenção de um certo nível de jurisdição do Tribunal Europeu de Justiça sobre o Reino Unido ao abrigo do acordo.

Corbyn pede alternativa

O chefe do Partido Trabalhista considera o rumo escolhido por May “um ato de autoagressão nacional” e apelou ao chumbo do acordo, na votação prevista para o início de dezembro. Corbyn propõe outra forma de sair da UE, “com base numa união aduaneira abrangente, um acordo forte para o mercado único que proteja os direitos laborais e salvaguardas ambientais”. Este ‘Brexit’ mais suave poderia ser apoiado pelo Parlamento, assegura. Sucede que entre as dezenas de deputados do Partido Conservador que anunciaram votar contra, muitos fá-lo-ão por considerar que o ‘Brexit’ de May não é suficientemente duro.

Nesse sentido falou Iain Duncan Smith, antigo ministro do Trabalho nos Executivos de May e David Cameron e favorável à saída da UE. O também ex-líder conservador prevê da parte da UE uma “pressão intolerável” nas negociações da relação futura, que levará Londres a aceitar condições prejudiciais só para evitar o backstop irlandês. A primeira-ministra retorquiu que a UE também não está interessada em aplicar a solução de recurso e que há alternativas.

Os apoiantes da permanência acreditam num segundo referendo <span class="creditofoto">Foto Toby Melville/REUTERS</span>

Os apoiantes da permanência acreditam num segundo referendo Foto Toby Melville/REUTERS

A aprovação do documento é, de momento, uma improbabilidade. O número de deputados conservadores dispostos a votar contra (pelo menos 88, numa estimativa da revista “New Statesman”) não tem paralelo nos parlamentares da oposição que votarão com Theresa May.

Do lado oposto aos que criticam a suavidade do ‘Brexit’ atualmente proposto estão os que preferiam uma relação mais próxima com a UE ou mesmo não sair, incluindo membros do Partido Conservador, mas também trabalhistas, liberais e outros. Os mais europeístas acreditam mesmo numa repetição do referendo, com a diferença de que agora os eleitores já conheceriam os termos da saída. Une-os a vontade de repudiar o que May trouxe de Bruxelas.

Nova ida às urnas é possível

O certo é que além dos conservadores descontentes, o Partido Trabalhista votará maioritariamente contra o acordo, bem como 11 dos 12 deputados Liberais Democratas, os nacionalistas escoceses (SNP) e galeses (PC) e a representante dos verdes. Também contra a versão do ‘Brexit’ de May está o partido que sustenta o seu governo minoritário: a direita unionista norte-irlandesa (DUP) não aceita a possibilidade de se aplicarem à Irlanda do Norte (em caso de aplicação do backstop) regras diferentes das do resto do Reino Unido. E ameaça mesmo rasgar o acordo que permitiu a May governar após a desastrosa vitória nas legislativas de 2017 (a primeira-ministra convocou eleições para as quais havia pouca apetência popular e nelas perdeu a maioria absoluta que herdara de Cameron).

O que acontece se o acordo alcançado ontem for chumbado é, por agora, uma incógnita. “Mais divisão e incerteza, com todos os riscos que isso implica”, previu a governante. Desenlaces tão díspares como nova consulta popular, legislativas antecipadas ou sair da UE sem acordo não podem, por ora, ser descartadas. Não custa concordar com Michael Fallon, ex-ministro da Defesa, que hoje no Parlamento avisou que o país está perante uma “enorme aposta”. Ganhá-la é tudo menos certo. E apostar um penny que seja em qualquer desfecho é arriscado.