Hong Kong

Greve geral, bloqueios, confrontos. A contestação tornou-se rotina, com Pequim à espreita

Os protestos em Hong Kong foram desencadeados pela oposição à proposta de extradição mas rapidamente evoluíram para um movimento mais amplo que exige reformas democráticas <span class="creditofoto">Foto JEROME FAVRE / EPA</span>

Os protestos em Hong Kong foram desencadeados pela oposição à proposta de extradição mas rapidamente evoluíram para um movimento mais amplo que exige reformas democráticas Foto JEROME FAVRE / EPA

Voos cancelados, transportes públicos com perturbações e confrontos com a polícia. Poderia ter sido apenas mais uma segunda-feira em Hong Kong. No entanto, à carga simbólica de uma paralisação generalizada acresce um cenário de intervenção do Exército chinês que “já não é impossível”. “Isto não vai acabar até o Governo perceber que a repressão sobre manifestantes não o leva a lado nenhum”, diz uma advogada. A chefe do Executivo recusa demitir-se e Pequim volta a pronunciar-se esta terça-feira

Texto Hélder Gomes

“Há uma piada popular aqui que diz que Carrie Lam tem aperfeiçoado a arte de ser um gravador.” É assim que a advogada Rachel Lao começa por comentar ao Expresso, a partir de Hong Kong, a conferência de imprensa da chefe do Executivo em dia de greve. A polícia anunciou que deteve 420 pessoas desde que os protestos começaram, há mais de dois meses, incluindo 82 durante as manifestações desta segunda-feira. Em causa está ainda a proposta de lei, entretanto abandonada mas não retirada completamente, que previa a extradição de suspeitos de crimes para jurisdições, designadamente a China continental, onde os críticos alegam não haver garantias de um julgamento justo.

Lam “continua a condenar os manifestantes e a elogiar a polícia, sem atender a nenhuma das exigências. Estou muito furiosa com a sua incapacidade de baixar a escalada da situação e chegar a entendimentos”, prossegue Lao. A colega de profissão Angeline Chan, que faz parte do Grupo de Advogados Progressistas naquela região administrativa especial da China, concorda: “A conferência de imprensa foi frustrante, para dizer o mínimo.” “As exigências dos manifestantes foram sempre claras e são cinco: remover a definição de protestos como motins, retirar completamente a proposta de lei de extradição, retomar o processo de sufrágio universal genuíno, investigar a brutalidade policial através de uma comissão independente e amnistiar todos os manifestantes envolvidos nos protestos desde junho”, sintetiza Chan.

“Penso que, neste momento, a minha demissão ou a dos meus colegas não ajudaria à situação”, disse este segunda-feira a chefe do Governo de Hong Kong, Carrie Lam <span class="creditofoto">Foto JEROME FAVRE</span>

“Penso que, neste momento, a minha demissão ou a dos meus colegas não ajudaria à situação”, disse este segunda-feira a chefe do Governo de Hong Kong, Carrie Lam Foto JEROME FAVRE

Na sua primeira aparição pública em duas semanas, a chefe do Executivo de Hong Kong recusou demitir-se e sublinhou que ela e a sua equipa estão concentradas em restabelecer a lei e a ordem no território. “Penso que, neste momento, a minha demissão ou a dos meus colegas não ajudaria à situação. A violência está a empurrar a nossa cidade, a cidade que todos amamos e muitos de nós ajudámos a construir, para o limiar de uma situação muito perigosa. A grande maioria dos residentes sente ansiedade em relação ao seu quotidiano. Alguns não sabem se ainda podem usar certos transportes públicos, enquanto outros são bloqueados a caminho do trabalho”, sublinhou, citada pela televisão Channel News Asia.

“PESSOAS NADA HABITUADAS A EXERCER DIREITO DE PROTESTO”

Antes da comunicação de Lam, ativistas invadiram as principais estações do metro de Hong Kong durante a hora de ponta da manhã, impedindo a partida de comboios e provocando longas filas e ocasionais discussões entre passageiros e manifestantes. Mais de 200 voos foram cancelados no aeroporto de Hong Kong, um dos mais movimentados do mundo. No sábado, os organizadores das manifestações anunciaram que 14 mil pessoas de mais de 20 setores tinham aderido aos protestos. Funcionários públicos, assistentes sociais, comissários de bordo, pilotos e motoristas de autocarros, entre outros, garantiram que fariam greve esta segunda-feira ou telefonariam a dizer que estavam doentes. A Direção dos Serviços da Função Pública confirmou entretanto que enviou inquéritos a todos os departamentos sobre o pessoal que não foi trabalhar.

Manifestantes tentam proteger-se do gás lacrimogénio lançada pela polícia de Hong Kong <span class="creditofoto">Foto Kim Kyung-Hoon / Reuters</span>

Manifestantes tentam proteger-se do gás lacrimogénio lançada pela polícia de Hong Kong Foto Kim Kyung-Hoon / Reuters

“Em vez de abordar as exigências do povo, [Lam] limitou-se a transferir a culpa para os manifestantes e a dizer que são os manifestantes que estão a destruir Hong Kong e a ameaçar a prosperidade e estabilidade de Hong Kong. Na verdade, é o exato oposto: foram a insistência dela em avançar com a proposta de lei, que dissuadiria muitos investidores estrangeiros, e o seu total desconhecimento da péssima forma como lidou com o problema que levaram a todo este conflito na sociedade”, critica Chan ao Expresso. “A greve foi, em grande medida, pacífica. As pessoas não estão nada habituadas a exercer o seu direito de protesto. E isto é uma greve política, o que significa que não é protegida pela legislação laboral. Por isso, foi impressionante ver tanta gente a participar. Houve ajuntamentos em vários bairros”, relata, sinalizando a rutura com o passado recente: “Antes, só haveria um grande protesto junto à sede do Governo ou do Tribunal da Relação.” Os protestos foram desencadeados pela oposição à proposta de extradição mas rapidamente evoluíram para um movimento mais amplo que exige reformas democráticas.

“A REVOLUÇÃO DO NOSSO TEMPO”

A 1 de julho de 1997, Hong Kong voltou para a administração chinesa sob o modelo “um país, dois sistemas”, que prevê um conjunto de liberdades, incluindo a liberdade de protesto e um sistema judicial independente, que não são gozadas na China continental. Lam acusou os manifestantes de, com as ações em curso, comprometerem aquele modelo. “Ela avisou que Hong Kong está ‘no limiar de uma situação muito perigosa’ mas essa ‘situação perigosa’ decorre da sua incompetência e da incompetência da sua Administração”, corrige Lao.

Em várias ações de protesto, documentadas em direto pelos repórteres do “South China Morning Post” – um jornal de Hong Kong publicado em língua inglesa –, os manifestantes incendiaram caixotes do lixo no exterior de esquadras da polícia e gritaram palavras de ordem como “Libertem Hong Kong! A revolução do nosso tempo!”.

Também baixaram a bandeira nacional, colocando-a, em seguida, no mar.

A polícia respondeu com gás lacrimogéneo em vários locais, incluindo nas barricadas construídas nalgumas das artérias mais importantes de Hong Kong. A publicação fala ainda de uma multidão com bastões a atacar os manifestantes.

Chau Tsun-fung, repórter de 26 anos do jornal “Ta Kung Pao”, foi detido durante uma operação policial no bairro de Sham Shui Po, sendo libertado após cerca de 15 minutos. O jornalista estava a tentar impedir que um colega, que se encontrava ferido e no chão, fosse pisado pela polícia. Ao libertá-lo, as autoridades disseram ter-se tratado de um “mal-entendido”, segundo relato do próprio.

PROTESTOS JÁ LEVARAM A INVASÃO E VANDALIZAÇÃO DO PARLAMENTO

A 1 de julho, por ocasião do 22.º aniversário da transferência da antiga colónia britânica para a China, centenas de manifestantes forçaram a entrada no Conselho Legislativo (Parlamento) e provocaram vários danos materiais, incluindo computadores partidos e paredes cobertas de tinta com mensagens contra a polícia, o Governo e o projeto de lei. Uma semana depois, Lam afirmou estar “de coração partido” com os confrontos provocados pela proposta de lei, que descreveu como um “fracasso total”. No entanto, à semelhança do que fizera no mês anterior, quando se limitou a suspender o avanço legislativo da proposta, a chefe do Executivo voltou a não retirar completamente o projeto de lei.

Os protestos nas ruas tornaram-se uma constante em Hong Kong desde há dois meses <span class="creditofoto">Foto JEROME FAVRE / EPA</p>

Os protestos nas ruas tornaram-se uma constante em Hong Kong desde há dois meses Foto JEROME FAVRE / EPA

“Não sei o que vai acontecer, ninguém sabe. Estou chocada que, depois de semanas de protestos e agora com uma greve em toda a cidade, Lam se recuse a atender às exigências. Ela poderia facilmente instaurar uma comissão independente de inquérito ou proferir a palavra ‘retirada’ relativamente à proposta de extradição mas, até ao momento, não fez nada disso”, lamenta Lao. Chan não diverge muito no prognóstico: “Isto não vai acabar até o Governo perceber que o exercício de repressão sobre manifestantes pacíficos não o vai levar a lado nenhum. Na verdade, as pessoas vai ficar mais zangadas.”

“CONVITE DIRETO A UMA INTERVENÇÃO DE PEQUIM”

A ausência de uma solução política para uma crise que dura há mais de dois meses é “um convite direto a uma intervenção de Pequim”, considera, em editorial, o “South China Morning Post”. Descrevendo uma intervenção do Exército chinês como “o pior cenário para Hong Kong”, o editorialista Alex Lo refere que, ainda que continue a ser pouco provável, tal cenário “já não é impossível”.

Na semana passada, numa rara conferência de imprensa, o Gabinete de Assuntos de Hong Kong e Macau, que está na dependência do Governo chinês, manifestou apoio a Carrie Lam, elogiou a ação da polícia e lembrou que “atos ilegais são atos ilegais”. O porta-voz rejeitou ainda a interferência dos países ocidentais: “Hong Kong pertence à China. Os assuntos internos de Hong Kong são os da China. Não é permitida a interferência”, sublinhou, acrescentando que “a intenção dos políticos dos países ocidentais” é “fazer de Hong Kong um problema para a China e criar dificuldades ao desenvolvimento chinês”. Para esta terça-feira já está marcada uma segunda conferência de imprensa daquele gabinete.