Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Para acabar com o kumbaya anti-Trump, falemos de ciganos ou de Mamadou Ba...

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Quem não arrepia ao ouvir um coro de apoiantes do Presidente dos Estados Unidos a gritar, num comício, “send her back”, referindo-se a uma congressista que nasceu noutro país? Sente-se a vibração da multidão alienada pelo ódio, quase se veem os braços estendidos e as braçadeiras. Não é por acaso que Trump escolheu Alexandria Ocasio-Cortez, com ascendência porto-riquenha, Ayanna Pressley, negra, Rashida Tlaib, uma filha de palestinianos, e Ilhan Omar, uma somali que se mudou para os Estados Unidos na infância, como suas principais inimigas. Quatro mulheres de minorias étnicas capazes de mobilizar todos os ódios de que ele precisa.

Mas deixem-me estragar o kumbaya anti-Trump, onde, tirando uns maluquinhos que escrevem no “Observador” ou nas redes sociais, estamos todos do mesmo lado. Não estamos. É um equívoco de que não pretendo ser cúmplice. Trump não foi eleito do nada, sem que ninguém tivesse feito a cama em que hoje se deita. Sem que ninguém tivesse ajudado a parecer banal, pelo menos no espaço mediático, o que antes não era. Sem que ninguém tivesse dado um carimbo de qualidade ao que antes se dizia com vergonha. Não, ele não está sozinho com os apoiantes que assustam as boas consciências ocidentais. Ele representa um tempo que não foi construído apenas por ignorantes e desesperados. Teve os seus obreiros intelectuais.

A semana passada ENTREVISTEI UMA CIGANA extraordinária para o meu podcast. Uma feminista lutadora e corajosa, articulada e com muito bom senso. Julguei, santa ingenuidade, que a sua sinceridade e inteligência iriam ajudar os que se baseiam na ignorância ou no impressionismo fácil a refletir. As reações foram perturbantes. As certezas inabaláveis tornavam quase inaceitável que eu tivesse entrevistado alguém que não correspondesse ao estereótipo. Uma fraude. Quase um insulto. Em Portugal, o descaramento do racismo em relação aos ciganos é tão primitivo, descarado e agressivo que é estranho ver o incómodo de tanta gente com Trump. Como se aquilo fosse uma realidade incompreensível para nós. Não é. Ela está até bastante entranhada.

Só combatem Trump os que, no lugar onde vivem, defendem aqueles que serão as primeiras vítimas do ódio. Sejam os ciganos ou um Mamadou Ba cercado por um bullying público. O resto é indignação de sofá. Fácil, porque o monstro está lá longe. Não é nosso vizinho, não é nosso familiar, não é nosso amigo

No entanto, tenho a certeza que as pessoas de quem li muitos destes comentários ficariam incomodadas se eu as colasse a Trump. Assim como tenho a certeza que Fátima Bonifácio, autora de um texto explicitamente racista, acha que Trump é um alarve. E que João Miguel Tavares, que numa perturbante confusão de conceitos defende que há culturas superiores e inferiores, se enoja com o Presidente dos Estados Unidos. Até muitos dos colunistas do “Observador”, que se dedicaram a esforços inumanos para branquear o artigo de Bonifácio, terão sentido um ligeiro estremecimento ao ver a populaça trumpista a gritar para uma congressista eleita ser mandada para a sua terra. Quem sabe, até o básico Saraiva não aprecie aquilo. Ao que parece, são todos, somos todos, contra Trump. Donald Trump dá imenso jeito para forjar um falso consenso.

Os Trump que se multiplicam por todo o lado são fruto de muitas coisas. Mas também são fruto da irresponsabilidade de elites mediáticas, da sua falta de civismo, do populismo que não se importa de instigar os sentimentos mais primários para ganhar audiência. Foram anos de promoção da boçalidade intelectual, a que pomposamente chamaram “politicamente incorreto”, que banalizou tudo o que Trump hoje diz. São pessoas como as que aqui referi, um pouco por todo o mundo ocidental, que estenderam e continuam a estender a passadeira encarnada às bestas. Que lhes deram legitimidade intelectual. Que tornaram normal o que já não era.

Como noutros tempos, quando o ódio fazia o seu caminho para levar monstros ao poder, não é possível manter neutralidade neste confronto. Há debate, há nuances, há posições variadas. Mas não há neutralidade. Só combate Trump quem o faz no sítio onde vive, não com um oceano no meio. Aqueles que, em cada lugar, têm a coragem de defender os que é mais fácil atacar. Que defendem as que serão as primeiras vítimas do ódio. Só combatem o que Trump representa os que aqui se entregam à impopular tarefa de defender os ciganos do racismo transversal. Os que que tiveram a coragem de, concordando ou discordando, defender Mamadou Ba do bullying público que lhe foi feito. Porque nenhum suposto cultor do “politicamente incorreto” imagina o que é ser negro, ter nascido noutro país e ser alvo do ódio. Sabem Mamadou Ba ou Ilhan Omar. Esses são os que, no lugar onde estão e com as minorias que aqui existem, resistem a Trump e aos seus parentes. O resto é indignação de sofá. Fácil, porque o monstro está lá longe. Não é nosso vizinho, não é nosso familiar, não é nosso amigo.