Debate
Caetano Veloso: “O Brasil tem de se afirmar de forma luminosa. É o nosso dever e a nossa razão de existir”
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Caetano Veloso: “O Brasil tem de se afirmar de forma luminosa. É o nosso dever e a nossa razão de existir”
Sábado à tarde, centenas de brasileiros e portugueses foram chegando e entrando numa fila para ouvir o debate entre o músico Caetano Veloso e o ex-deputado brasileiro Jean Wyllys. Duas horas de críticas, projetos e promessas para anunciar que os ninjas dos ‘media’ chegaram a Portugal
Texto Christiana Martins Fotos e vídeos Rúben Pereira
Ninguém sabia que João Gilberto, o mágico da voz pequena e do Brasil solar e doce, tinha morrido. Ninguém podia sequer imaginar que João tinha morrido.
A tarde do último sábado prometia festa, agitação e boa disposição. Cerca de duas horas antes da abertura do debate entre Caetano Veloso e Jean Wyllys, o público começou a chegar e meia hora antes da abertura da conversa, a fila já dava a volta à esquina da Avenida Duque de Loulé, em Lisboa.
À maneira dos opositores do Presidente Jair Bolsonaro, não se viam bandeiras brasileiras nem t-shirts verdes e amarelas e o ambiente rescendia a reencontro e boa disposição. Não havia cadeiras suficientes para todos os presentes, mas o chão apetecia, porque as pessoas só se queriam acomodar para esperar pelo debate. Foram se espalhando, preenchendo todas as brechas e cantos do restaurante Novo Mundo, enquanto os convidados não apareciam para conversar.
A deputada do bloco de Esquerda Joana Mortágua, o escritor angolano José Eduardo Agualusa e muitos, muitos brasileiros animados pela inauguração da Casa Mídia Ninja, em Lisboa. O grupo de jornalismo colaborativo que se instalou em Portugal para divulgar a situação política vivida no Brasil e para exportar os seus métodos irreverentes e de proximidade para o espaço mediático português.
Com quase 20 minutos de atraso, Caetano e Jean Wyllys apareceram, acompanhados pela escritora Inês Pedrosa, a quem coube a tarefa de mediar a conversa entre dois homens que revelaram, à partida, admirar-se mutuamente. A audiência estava rendida e bastava Caetano suspirar e sorrir que os aplausos surgiam. A conversa arrancou por onde todos queriam começar: por um pedido de esperança ao velho baiano.
Inês Pedrosa resumiu a expectativa da plateia: “Como continuar a acreditar no momento atual do Brasil?” Lúcido, o músico, primeiro, espetou o dedo na ferida: “Bolsonaro não veio de Marte, as forças que permitiram o bolsonarismo são expressão do Brasil.” Mas não comparou a realidade atual do Brasil ao período da Ditadura Militar e, para responder à escritora, invocou a sua própria essência: Caetano resiste às adversidades do momento político sendo o que é, um músico popular.
Explicou que no primeiro turno das últimas eleições presidenciais brasileiras de 2018 não apoiou Lula da Silva, tendo preferido votar em Ciro Gomes, candidato que acabaria na terceira posição. E, perante uma plateia de apoiantes de Lula, explicou que o fez porque discordou da estratégia do Partido dos Trabalhadores de “concentrar todas as fichas” no ex- Presidente.
Caetano Veloso não está otimista, não crê que a recente divulgação de escutas entre o ex-juiz e atual ministro da Justiça Sérgio Moro e os procuradores da Operação Lava Jato seja suficiente para alterar a realidade política brasileira. Nem crê no impacto da revelação das irregularidades por meios da imprensa tradicional, como o jornal “Folha de São Paulo” ou a revista “Veja”, preferindo defender experiências alternativas como os Ninjas. Mas, apesar das dúvidas, Caetano disse que vale à pena acreditar que é possível provocar mudanças e que, pessoalmente, tem “a obrigação de dobrar a aposta” no futuro do Brasil, até porque, confessa, não quer sair do país natal, não consegue viver longe de casa.
Foi a deixa certa para passar a palavra ao ex-deputado Jean Wyllys, que saiu do Brasil depois de ter sido ameaçado de morte e depois do assassinato da vereadora Marielle Franco. Assumidamente influenciado por Caetano Veloso, o político que vive atualmente em Berlim, disse que o maior papel de resistência política tem sido travado nos palcos, pelos agentes culturais brasileiros. “Os artistas têm o papel de manter o imaginário progressista que não pode desaparecer neste momento”, defendeu Wyllys. Quanto ao universo mediático, sublinhou os riscos de um mundo impregnado por “fake news”, a sua área de investigação atual.
E, enquanto a Esquerda brasileira não faz o ansiado processo de autocrítica, os dois convidados alertaram para os riscos de a oposição continuar fechada sobre si mesma e distante do terreno ocupado pelos problemas reais da população. “Têm de retornar às bases e furar a bolha; ir ao encontro das pessoas, sem abrir mão do mundo digital”, avisou Jean Wyllys.
A conversa corria como se todos os presentes se conhecessem há muito tempo e estivessem em casa. Até que numa pergunta vinda da audiência, alguém quis saber a opinião de Caetano e Wyllys sobre os brasileiros que têm vindo viver para Portugal. Neste momento, uma prolongada e sonora vai encheu o espaço. Caetano arriscou que muitos vêm “em fuga da Lava Jato”, numa espécie de refugiados fiscais, que não tendo cumprido responsabilidades com os impostos brasileiros, preferem viver na Europa que fala português. Jean Wyllys invocou o “complexo de vira lata” de quem acha que o jardim do vizinho é sempre mais bonito que o próprio. “Uma classe média que está fugindo da tragédia que ajudou a construir”, completou o ex-deputado.
Em Português nos entendemos
Depois, a conversa ancorou na Língua Portuguesa, nas diferenças entre os dois lados do Atlântico, nas subtilezas e nas consequências de se falar de género. E a força das palavras navegou no à vontade dos convidados, para deleite da plateia. Conversaram sobre se se diz “veado” ou “viado”, do impacto de apontar alguém e dizer “bicha”, do desconhecimento por parte dos brasileiros do que é um “paneleiro”. Até que Wyllys recordou que aquela era uma maneira simpática de se abordar o preconceito que violenta quem assume uma sexualidade diferente da norma.
Para finalizar o debate-conversa-de-amigos, Caetano fez a sua profissão de fé, dizendo esperar que “o Brasil se afirme de uma maneira luminosa”, porque esse é o dever dos brasileiros e a própria razão daquele país existir. E concluiu, incentivado por Inês Pedrosa e Jean Wyllys, que recordaram palavras do músico no passado: “O Brasil vai dar certo porque eu quero!”
O sol ainda aquecia lá fora, quando o encontre terminou ao som dos gritos de “Marielle presente” e às promessas de “ninguém solta a mão de ninguém”, palavras de ordem da oposição ao governo de Jair Bolsonaro. Pablo Capilé, um dos fundadores da Mídia Ninja, recordou as origens do movimento, nascido no interior do Brasil para chegar a Lisboa, aparentemente, daqui para a frente a capital das críticas ao novo regime, com promessas de conferências e debates durante todo o verão, desde Manuel D'Ávila, a candidata a vice da coligação entre o PT e o Partido Comunista, a Guilherme Boulos, o líder do Movimento dos Sem Teto, e a Glenn Greenwald, o jornalista que tem liderado a divulgação de informações sobre o comportamento de Sérgio Moro durante a Operação Lava Jato.
Feita a selfie da praxe, todos saíram a sorrir, entre beijos e abraços da audiência. Mas àquela hora, ainda ninguém sabia que João Gilberto tinha morrido e que o violão do baiano não voltaria a embalar os desejos de um Brasil mais feliz. Ninguém podia sequer imaginar a dimensão do silêncio de João.
Sábado à tarde, centenas de brasileiros e portugueses foram chegando e entrando numa fila para ouvir o debate entre o músico Caetano Veloso e o ex-deputado brasileiro Jean Wyllys. Duas horas de críticas, projetos e promessas para anunciar que os ninjas dos ‘media’ chegaram a Portugal