Bruno Vieira Amaral

Sair à inglesa

Naquela que devia ser a semana decisiva da saída do Reino Unido da União Europeia publicamos diariamente uma crónica “especial Brexit”. A primeira é do escritor Bruno Vieira Amaral, que considera que, se existe a expressão “sair à francesa” para descrever uma saída discreta, a partir de agora a expressão “sair à inglesa” servirá para descrever qualquer saída anunciada com pompa e orgulho e nunca concretizada

A 23 de junho de 2016, num referendo convocado pelo então primeiro-ministro, David Cameron, um total de 17.410.742 de britânicos votaram a favor da saída do Reino Unido da União Europeia. Pelo “não” votaram 16.141.241 eleitores. Como se costuma dizer, em democracia por um milhão de votos se ganha, por um milhão de votos se perde. Oficialmente, o Brexit começou naquele dia e, com ele, uma das maiores trapalhadas políticas da história do projeto europeu.

Quase um ano depois, a 29 de março de 2017, já com Theresa May como primeira-ministra, o Artigo 50 do Tratado de Lisboa foi acionado, pelo que a saída deveria ocorrer, no limite, a 29 de março de 2019. Porém, a quatro dias da data decisiva ninguém sabe o que vai acontecer. O Artigo 50, que deveria funcionar como o botão de ejeção dos aviões, revelou-se a barra de emergência de uma daquelas portas de discoteca que os donos fecham a cadeado.

Como disse há dias Theresa May, “a única certeza é a atual incerteza.” No entanto, a afirmação peca por otimismo. Quando se trata de Brexit, nem a incerteza é certa

Após longas e duras negociações que resultaram num acordo de saída de 585 páginas entre o Reino Unido e a União Europeia, de forma a minimizar os transtornos do divórcio para os cidadãos e as empresas, hoje, uma saída sem acordo, de consequências imprevisíveis e potencialmente desastrosas para a economia britânica e também para os direitos dos seus cidadãos a viverem noutros países europeus, é a hipótese mais provável no meio de um cenário de dúvidas, votações sucessivas, adiamentos, impasses, chumbos de propostas, ameaças e manobras dilatórias que serão o mais próximo que a pátria da democracia parlamentar consegue chegar daquelas cenas de pugilato em hemiciclos asiáticos. Como disse há dias Theresa May, “a única certeza é a atual incerteza.” No entanto, a afirmação peca por otimismo. Quando se trata de Brexit, nem a incerteza é certa.

A ideia parece ter saído da cabeça de pessoas que estavam aborrecidas com a vida e que resolveram animar os seus dias com uma proposta de saída da União Europeia

A primeira coisa que apetece dizer, em função do caos que se instalou, é que pôr nas mãos do povo uma decisão cujas consequências não eram claras nem sequer para os políticos foi o pecado original do Brexit. Pressionado por elementos do seu partido e um pujante UKIP, o então primeiro-ministro, David Cameron, avançou para o referendo, talvez com excesso de confiança numa vitória do “não” que calasse os partidários da saída ou esperançoso de reforçar a sua capacidade negocial com uma União Europeia receosa de um divórcio. Numa versão menos benévola, a ideia parece ter saído da cabeça de pessoas que estavam aborrecidas com a vida e que resolveram animar os seus dias com uma proposta de saída da União Europeia, encontrando defensores em irreverentes profissionais como Boris Johnson, herdeiros de um certo isolacionismo britânico tão típico das ilhas como a condução à esquerda e a má dentição.

Nestes advogados do Brexit, a retórica anticontinental e o discurso eurocético, não obstante as legítimas reservas quanto à (peço desculpa pelo palavrão) “democraticidade” das instituições europeias, foram sempre uma marca de elitismo, uma forma sofisticada de “épater le français”, para usar uma expressão tipicamente britânica. Porém, atrás deles vieram as hordas menos civilizadas de eurocéticos, com as suas legiões de pan-ignorantes, racistas, nacionalistas que, no Reino Unido como noutros pontos da Europa, elegeram a União Europeia como bicho-papão, a fonte de todos os males com os seus monstros tecnocráticos, as suas leis picuinhas, a sua falta de escrutínio. Confrontados com o resultado inesperado do referendo, aqueles foram lenta e discretamente desaparecendo de cena e os outros, à exceção dos radicais do “quanto pior, melhor”, devem estar na fase do “não percebi bem qual era a pergunta.”

Responder à pergunta se o Reino Unido devia ou não sair da União Europeia era algo ao alcance até do mais alienado ou mentecapto dos eleitores. Já entender as implicações de uma eventual saída exigia uma preparação e um esclarecimento que ninguém se preocupou em fazer

Bem entendido, a culpa da trapalhada não é do resultado da votação, nem sequer da decisão de convocar um referendo, mas de se ter convocado um referendo sobre uma questão tão importante sem que se tivesse preparado um plano para o caso de o “não” à permanência na UE ganhar, como acabou por acontecer.

Os políticos de uma democracia parlamentar tão antiga deviam saber que responder à pergunta se o Reino Unido devia ou não sair da União Europeia era algo ao alcance até do mais alienado ou mentecapto dos eleitores. Já entender as implicações de uma eventual saída exigia uma preparação e um esclarecimento que ninguém se preocupou em fazer. A confusão instalada não nasce, pois, do desrespeito das regras democráticas e da legítima vontade dos eleitores, mas da compreensível relutância em assumir os inevitáveis custos políticos da saída.

Do lado britânico, ninguém quer ser responsável por um mau acordo mesmo que à partida se soubesse que um bom acordo (um acordo em que o Reino Unido beneficiasse das vantagens da saída sem perder os privilégios de membro) era impossível e que a inexistência de um acordo seria catastrófica.

Aquilo a que bondosamente se poderá chamar estratégia de Theresa May já motivou comparações com o Cavaleiro Negro dos Monty Python, que, sem braços e sem pernas, insiste em dizer que está tudo bem

Os impasses britânicos têm naturalmente levado a União Europeia a perder a paciência. Donald Tusk afirmou recentemente que era preciso pôr fim “a este circo.” Porém, ninguém parece querer desmontar a tenda. Aquilo a que bondosamente se poderá chamar estratégia de Theresa May já motivou comparações com o Cavaleiro Negro dos Monty Python, que, sem braços e sem pernas, insiste em dizer que está tudo bem.

Na semana passada, acrescentando valor de entretenimento ao processo, o ilusionista Uri Geller, conhecido por entortar colheres com o poder da mente, afirmou que faria tudo o que estivesse telepaticamente ao seu alcance para evitar o Brexit. Talvez esteja a funcionar: por vezes dá a impressão de haver uma força invisível a segurar o Reino Unido. Uma força tão misteriosa como aquela que impede um bêbedo de sair de uma festa depois de anunciar várias vezes a sua intenção de se retirar. Se existe a expressão “sair à francesa” para descrever uma saída discreta, a partir de agora a expressão “sair à inglesa” servirá para descrever qualquer saída anunciada com pompa e orgulho e nunca concretizada.

Para se realizar um segundo referendo seria necessário alterar a lei, para interromper o processo também, um novo acordo tem de passar pelo Parlamento e tudo isto se parece com um gigantesco erro que tragicamente não pode ser assumido nem corrigido

Com o Brexit, o Reino Unido transformou-se numa personagem indecisa como Bartleby, o homem que preferia não o fazer, ou como Oblomov, o procrastinador por excelência, incapaz de se decidir, preferindo habitar um limbo disfarçado de rigorosos procedimentos democráticos: para se realizar um segundo referendo seria necessário alterar a lei, para interromper o processo também, um novo acordo tem de passar pelo Parlamento e tudo isto se parece com um gigantesco erro que tragicamente não pode ser assumido nem corrigido. É como se um dramaturgo, depois de começar a escrever uma peça heroica com grande entusiasmo, tivesse contratado atores e alugado uma sala e agora não soubesse dar um fim condigno ao texto, resvalando para a farsa ou a ópera bufa involuntária.

Vladimir e Estragon continuam à espera de um Godot que tanto pode chegar a 29 de março como a 11 de abril. Ou a 7 de maio. Ou a 22 de maio. Ou, como na peça de Beckett, nunca chegar. Não se sabe. É possível que o Reino Unido fique num limbo jurídico-institucional e adquira o estatuto de alma penada a arrastar as correntes pelos corredores de Bruxelas. Nem mesmo a permanência na União Europeia está posta de parte, o que a acontecer faria do Brexit uma simples narrativa cautelar para todos os países que ponderam abandonar o barco sem terem um bote salva-vidas e que aumentaria as reservas dos eurocéticos perante uma União Europeia em modo Hotel California, onde se pode entrar a qualquer altura, mas de onde nunca se pode sair.

Talvez não fosse má ideia conceder períodos sabáticos aos estados-membros. Da mesma maneira que a presidência da União Europeia vai rodando pelos países, também deveria ser possível tirar umas férias de vez em quando, dar um tempo, conhecer a vida lá fora

Finda esta crise, talvez não fosse má ideia conceder períodos sabáticos aos estados-membros. Da mesma maneira que a presidência da União Europeia vai rodando pelos países, também deveria ser possível tirar umas férias de vez em quando, dar um tempo, conhecer a vida lá fora. Podia ser que o euroceticismo de alguns perdesse força ou que, pelo contrário, chegassem à conclusão de que o melhor é viverem tranquilos no seu cantinho, de fronteiras fechadas, a salvo da tecnocracia de Bruxelas e dos efeitos nocivos das suas políticas.