A tempo e a desmodo

A tempo e a desmodo

Henrique Raposo

O cisne antissemita

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O “cisne negro” é um conceito cunhado por Nassim Taleb. Outro nome possível podia ser o 'Cisne de Eclesiastes', porque está aqui em causa a profunda ignorância humana em relação ao futuro. Nós construímos ideologias e causas que procuram antecipar e prever o futuro, mas a verdade é que nunca acertamos. De Trump ao 'Brexit', do 11 de Setembro à queda do Muro de Berlim, os acontecimentos que se tornaram essenciais na história recente foram todos — sem exceção — inesperados, isto é, cisnes negros.

Quando aplicamos este conceito ao antissemitismo e o Holocausto, ficamos chocados, sem saber o que pensar ou sentir. À posteriori, é fácil pensar que todos os judeus a seguir a 1933, 1939 ou 1942 ficaram em estado de alerta e à procura de fuga. Não é verdade. Como já salientei nesta coluna, a autobiografia de Primo Levi, por exemplo, mostra que os judeus da Europa entraram em negação. A solução final era um excesso de realidade tão doloroso, que muitos optaram pela negação e por viverem a vida com o máximo de normalidade, assumindo que aquilo-que-se-dizia-sobre-os-nazis era uma fantasia impossível. “A ignorância permitia-nos viver”, escreveu Levi.

Homem de razão e progresso, Wiesenthal muito simplesmente não conseguia acreditar que o mal poderia regressar na sua forma mais pura — um aviso muito sério para o nosso tempo

Wiesenthal, judeu e polaco, sentia a mesma negação de Levi, judeu e italiano. Aquele que viria a ser o maior caçador de nazis pós-45 não tinha a capacidade moral e até linguística para alcançar a natureza única do nazismo. Durante imenso tempo, dizia Wiesenthal, “não levámos Hitler a sério, considerávamo-lo uma crise passageira”. Homem de razão e progresso, Wiesenthal muito simplesmente não conseguia acreditar que o mal poderia regressar na sua forma mais pura — um aviso muito sério para o nosso tempo.