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“Não aguento mais.” A morte da ativista que denunciava abusos sexuais de líderes religiosos

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Sabrina de Campos sentia-se perseguida e em “perigo de vida” Foto d.r.

Sentia-se coagida e perseguida pelos “criminosos” que ajudou a denunciar. Sabrina de Campos não se cansava de contar histórias de quem era abusada e violada às mãos de membros de comunidades religiosas brasileiras. Até que se cansou. “Não aguento mais”, escreveu, horas antes de confirmada a morte. Pede às vítimas que “abram a boca, não tenham vergonha”. Aos 37 anos, deixa três filhos

Texto João Diogo Correia

A morte não exclui ninguém das suas lutas. Com Sabrina de Campos não será diferente. Foi o que a ativista brasileira deixou claro na mensagem que publicou no Facebook na noite deste sábado, 2 de fevereiro, no que se anunciava já como uma despedida. “Todas as provas, evidências, sistemas de apoio, redes organizadas e, sobretudo, meu legado e passagem por aqui está entregue ou chegará às mãos corretas. As redes de apoio aos brasileir@s foram criad@s e se expandirão na velocidade da luz! Não se desesperem.” A “passagem por aqui” de Sabrina estava prestes a terminar. “SIM e FIM”, escreveu.

Sabrina de Campos, que também respondia pelo último nome, Bittencourt, tornou-se conhecida no Brasil pelo apoio prestado a vítimas de violência sexual. Usava as redes sociais para partilhar as histórias que lhe chegavam, às quais juntava frequentemente notas autobiográficas - a própria Sabrina contava ter sido abusada desde pequena por membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, popularmente conhecida por Igreja Mórmon, de que os familiares eram devotos. Empreendedora social, Sabrina fazia ainda parte da ONG Vítimas Unidas e fundou o movimento Coame, sigla de Combate ao Abuso no Meio Espiritual, um agregador de denúncias contra padres, pastores, gurus e demais líderes.

Joao Teixeira de Faria, ou João de Deus, como se autodenominava o curandeiro acusado de abuso sexual <span class="creditofoto">Foto Evaristo Sá/AFP/Getty Images</span>

Joao Teixeira de Faria, ou João de Deus, como se autodenominava o curandeiro acusado de abuso sexual Foto Evaristo Sá/AFP/Getty Images

Foi com o Coame que denunciou Sri Prem Baba, guia espiritual brasileiro, e João de Deus, um médium, curandeiro que realizava, nas palavras do próprio, “cirurgias espirituais”. João Teixeira de Faria, que adotou para si o nome João de Deus, conquistou milhões de seguidores, e de reais, no Brasil e no estrangeiro, sobretudo após a visita de Oprah Winfrey, em 2012, à casa onde atuava, em Abadiânia, no estado de Goiás. Com mais de 300 denúncias de violação e abuso sexual, incluindo a da própria filha, João de Deus é hoje, aos 76 anos, o rosto de um dos maiores escândalos de abuso sexual no Brasil. Em dezembro passado, entregou-se às autoridades e aguarda julgamento em prisão preventiva, acumulando acusações de posse ilegal de armas de fogo.

Sabrina de Campos nunca se cansou de divulgar as denúncias, de as incentivar e de apoiar as vítimas. Tinha material preparado para incriminar outra dezena de gurus espirituais. Sentia, porém, o cerco a apertar-se, ao mesmo ritmo que crescia a lista de nomes que denunciava. Um dos últimos foi o de Sandro Teixeira, filho de João de Deus. No sábado, pouco antes da despedida de Sabrina, Sandro foi preso, acusado de coagir quem testemunhava contra o pai. “VIVA! Mais um da quadrilha na cadeia! Quando falamos que temos PROVAS e EVIDÊNCIAS, além de relatos, confiem. Somos responsáveis nas nossas acusações e pedidos de investigação”, congratulava-se Sabrina.

A ativista vivia longe do Brasil e criava estratégias de despiste com os amigos, como publicar fotografias antigas em diferentes partes do mundo, fazendo crer que se tratava de imagens atuais. Sentindo-se ameaçada, acreditava que assim ninguém descobriria o seu paradeiro. No mesmo sábado, 2 de fevereiro, publicou os perfis das pessoas que a estavam a “colocar em situação de perigo de vida”. A última morada conhecida e aceite como verdadeira era Barcelona, Espanha. A última mensagem que escreveu na rede social, e que depois apagou, dava a entender que não queria continuar a carregar o fardo. “Eu fiz o que pude, até onde pude. Meu amor será eterno por todos vocês. Perdão por não aguentar, meus filhos. Vocês terão milhares de mães no mundo inteiro. Minhas irmãs e irmãos na dor e no amor, cuidem deles por mim…”

Sabrina de Campos, 37 anos, deixa três filhos. Um deles, Gabriel Baum, é conhecido por dar palestras sobre alimentação saudável desde os 10 anos (faz 17 esta semana). Mãe e filho são responsáveis pelo projeto Escola com Asas, que nasceu da vontade de promover a qualidade de vida para crianças através da alimentação. Depois de conhecida a morte da mãe, Baum escreveu. “Ela deu o último passo para gente poder viver. Eles mataram minha mãe.” Pede agora paz e silêncio, para ajudar os dois irmãos mais novos. O mesmo faz Leila Garcia, amiga de Sabrina e membro dos grupos de apoio, contactada pelo Expresso. “Combinámos, eu e a família da Sabrina, que não daríamos entrevistas ou declarações sem antes nos falarmos.” Foi pedido também que sejam evitados quaisquer contactos com familiares, “preservando-os de perguntas que sejam dolorosas neste momento tão difícil.”

A morte de Sabrina foi anunciada este domingo e, de lá para cá, nasceram dúvidas e teorias sobre os seus contornos. A ativista dizia ser perseguida “por um homem chamado Paulo Pavesi”, que já se pronunciou, afirmando estar a preparar um pedido à Polícia Federal para que seja confirmado o local do “suposto suicídio”. Em Barcelona, os hospitais não confirmam o óbito; e tem sido levantada a hipótese de uma “morte simbólica”, que proteja Sabrina. O filho Gabriel, porém, escreveu logo após as primeiras notícias que a mãe “morreu no Líbano e será enterrada debaixo da sua oliveira”. Os próximos dias poderão ajudar a esclarecer os detalhes do caso.

Sucederam-se também as mensagens de apoio. O grupo Vítimas Unidas escreveu que “a luta de Sabrina jamais será esquecida”. “Continuaremos, com a mesma garra, defendendo as minorias, principalmente as mulheres que são vítimas diárias do machismo”, lê-se. Sâmia Bomfim, vereadora do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) por São Paulo, classificou como “entristecedor e revoltante que a pressão do machismo e da violência tenham tornado insuportável a vida de Sabrina Bittencourt. A ativista lutou para desmascarar abusos cometidos por criminosos como João de Deus. Devemos seguir nessa dura batalha. Nem uma a menos.”

A carta de Sabrina foi por ela apagada. Começava com uma referência a uma outra vereadora do PSOL, assassinada há pouco menos de um ano. “Marielle [Franco], me uno a ti. Somos semente. Que muitas flores nasçam dessa merda toda que o patriarcado criou há 5 mil anos”. A semelhança das lutas, e o fim precoce de ambas, deu a uma a frase na altura dedicada à outra. “Sabrina de Campos, Presente.”