A bosta do racismo
Duas palavras, “bosta” e “bófia”, chegaram para que o país se pudesse furtar mais uma vez a um debate sério sobre o racismo e encontrasse um alvo mais conveniente: Mamadou Ba. Comecemos pela frase. Mamadou tinha denunciado dois perfis de Facebook onde agentes de autoridade brincavam com o estado em que ficou uma das mulheres agredidas no Bairro da Jamaica. No meio, envolveu-se num debate com um radical que defendia que não fazia sentido apresentar queixa às autoridades, porque os “aparelhos repressivos do Estado têm um carácter racista”. O desabafo seguinte, num post, era dirigido a este interlocutor: “Sobre a violência policial, que um gajo tenha de aguentar a bosta da bófia e da facho esfera é uma coisa é natural, agora levar com sermões idiotas de pseudo radicais iluminados é já um tanto cansativo, carago!” Como esclareceu num post seguinte, coisa percetível quando a “bosta” se refere à “bófia” e à “facho esfera”, não se tratava de uma caracterização da polícia, mas de uma caracterização dos seus atos. A polícia não é “bosta”, faz “bosta” (ou asneira). Será um preciosismo, mas quem se choca com o uso de determinadas palavras tem o dever de saber com precisão o que elas quiseram dizer.
A minha primeira reação a estas palavras foi a normal. Não conhecia o seu contexto, achei-as uma generalização sem sentido. Quando passei a conhecer achei que o vernáculo era escusado num dirigente associativo e partidário. Quer o “bófia”, quer a “bosta”. Seria o que eu iria dizer, sem mais escândalo do que o tema merecia quando debatíamos o que aconteceu no Bairro da Jamaica e na Avenida da Liberdade. Esse era o tema essencial e foi por isso mesmo que me dediquei a ele, e apenas a ele, no meu texto do Expresso. Mas a crítica que pretendia fazer a Mamadou Ba deixou de fazer sentido perante o que veio depois.
Mamadou Ba é assessor político, negro e, julgam muitos, estrangeiro. Uma espécie bingo para a demagogia extremista que não hesitou, com a prestimosa ajuda do “Correio da Manhã”, a vender a ideia de que Mamadou fez um contrato de 191 mil euros do Estado. Na realidade, referiam-se ao seu rendimento como assessor na Câmara Municipal de Lisboa durante oito anos, em regime de recibo verdes, com um rendimento líquido mensal de 900 euros. Uma fortuna, já se vê. As televisões repetiram esta efabulação, através de um vídeo (já lá irei), sem sequer se darem ao trabalho de saber se era verdade.
Nas redes sociais, vários agentes policiais deram largas à sua indignação. Pelo menos duas pessoas que se identificam como agentes da PSP ameaçaram fisicamente, nas suas páginas e em público, Mamadou Ba: “Não perdes pela demora”; “Este indivíduo por mim era o primeiro a levar no focinho”. Se agentes da autoridade ameaçarem dirigentes políticos por delito de opinião choca menos do que “a bosta da bófia” é porque o Estado de direito já não nos interessa muito. Se quem nos deve proteger nos ameaça, só porque deles não gostamos, dificilmente podemos achar que vivemos numa democracia. E se nada acontecer aos agentes de forças de segurança que fizeram estas ameaças públicas (e privadas) temos boas razões para acreditar que ninguém defenderá Mamadou Ba. Tivemos, aliás, o presidente de uma distrital do PSD a pôr em causa o direito de Mamadou a pedir proteção policial (quem critica a PSP deve poder ser espancado), o que é um pouco mais grave do que ter mandado Mamadou para a “bardamerda”.
Não faltou quem responsabilizasse Mamadou Ba e Joana Mortágua (que se limitou a partilhar um vídeo e a exigir explicações, também merecendo por isso ameaças públicas de agentes policiais) pelos “desacatos” (nome de código para manifestações de negros) do dia seguinte. Os negros, coitados, não têm a capacidade de se indignarem sozinhos com as imagens que viram do Bairro da Jamaica.
Mamadou Ba chamar-se Mamadou Ba, ser negro e julgarem que ele é estrangeiro teve tudo a ver com a histeria que se instalou. Permitiu que este país, que o Estado Novo ensinou que era excecionalmente tolerante, exibisse finalmente o seu racismo sem filtro
Como seria de esperar, a extrema-direita aproveitou a onda. Não foi fácil subir a parada. O discurso desbragadamente insultuoso que se espalhou de forma viral contra o “estrangeiro” atrevido tornou-se semelhante ao que costuma ser usado pelo PNR. Para se distinguir, tiveram de ser imaginativos – até porque se aproximam eleições e há a concorrência do NOS e do Chega. Fizeram uma espera para filmar Mamadou Ba enquanto gritavam com ele. E isto é malta sufocada pelo “politicamente correto”. Imaginem se, de cada vez que dizem uma barbaridade, lhes fizessem o mesmo. Também houve, claro, várias petições. Uma delas exigia a destituição de Joana Mortágua (há quem queira escolher pelos eleitores quem pode ser deputado) e do assessor parlamentar Mamadou Ba.
O major-general na reserva Raul Luís Cunha , que comandou a Brigada de Reação Rápida do Exército até 2011, escreveu no seu perfil público: “Não entendo porque é que o Governo não procede de imediato à expulsão do indivíduo Mamadou Ba, que não é cidadão nacional e já abusou em demasia da hospitalidade do Estado Português.” Na realidade, Mamadou Ba é cidadão português, o que faz deste general mais um leviano das redes sociais, que manda postas de pescada em público sem se informar. Mas ainda que não fosse, o que ficamos a saber é que este senhor, que teve altas responsabilidades nas Forças Armadas, defende extradições por delito de opinião. O que mais se ouviu esta semana foi gente a explicar que Portugal não é um país racista para depois deixar claro que a opinião de um “estrangeiro” não é tão livre como a de um nacional.
Nunca, que me recorde, qualquer declaração pública de qualquer pessoa causou uma onda de ódio semelhante à que se sentiu na semana passada. Duvido que alguém tenha recebido a quantidade de ameaças de morte que foram dirigidas a Mamadou Ba, incluindo de quem devia garantir a sua segurança. Que tenha lido insultos tão abjetos e tão escancaradamente racistas nas redes sociais. Que tenha sido filmado na rua para ser insultado. Que tenha ouvido de um general na reserva com altíssimas responsabilidades recentes a exigência de extradição do país por delito de opinião. Que tenha visto sublinhada de forma tão clara e crua a sua cor e a sua nacionalidade. E Mamadou Ba chamar-se Mamadou Ba, ser negro e julgarem que ele é estrangeiro teve tudo a ver com a histeria que se instalou.
O que aconteceu no Bairro da Jamaica e na Avenida da Liberdade poderia ter servido para debater muita coisa, incluindo o racismo estrutural que define o lugar do negro na sociedade portuguesa. Mas a vontade do país não se ver ao espelho fez com que procurasse desesperadamente um caso com que se entreter. Foi a “bosta da bófia” de Mamadou Ba, um ativista antirracista até há poucos dias desconhecido da esmagadora maioria da população. O inaudito grau de violência a que foi sujeito, absolutamente desproporcionado para a sua suposta falha, acabou por ilustrar como o nosso racismo não é apenas estrutural. É explícito. Bastou raspar o verniz para ele mostrar toda a sua brutalidade. Mamadou Ba permitiu que este país, que o Estado Novo ensinou que era excecionalmente tolerante, exibisse finalmente o seu racismo sem filtro.
Se, perante uma semana de pornográfica exibição de racismo, eu desse à expressão de Mamadou Ba mais do que uma importância secundária, criticável nos termos mas irrelevante no conjunto do que aconteceu, estaria a ser cúmplice. Talvez seja preciso os negros começarem a ter o descaramento que lhes faltou até agora para vencerem a subalternidade a que continuam sujeitos. Sempre a serem-lhes exigidas provas de bom comportamento e pedidos de desculpa para gentilmente lhes cedermos o direito a serem cidadãos plenos. Para terem o direito a um presente e a um futuro em que a sua cor não seja um obstáculo. Para terem as mesmas probabilidades de viver nos mesmos bairros que os brancos, conseguirem os mesmos empregos que os brancos e serem deputados como os brancos. E até para desabafarem a sua revolta com tão pouco cuidado como os brancos.