RICARDO COSTA

Um crowdfunding ainda surpreende em 2018?

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Pelos vistos, há um crowdfunding que está a surpreender muita gente na política, nos partidos e nas instituições e, naturalmente, no comentário. Faz-me alguma confusão que assim seja, porque estamos em 2018. Há seguramente muitas questões complexas levantadas pela greve cirúrgica dos enfermeiros, mas o crowdfunding não é uma delas.

A greve tem várias características raras, sendo que a mais importante de todas é estar totalmente direcionada a cirurgias, provocando um impacto direto em milhares de doentes (muitos com casos graves e sem recursos alternativos) e um impacto indireto em listas de espera, o que multiplica o seu efeito no tempo. Por ter estas características, conseguiu, através de grupo reduzido, ser muito eficaz. Aliás, os organizadores da greve só precisaram de escolher cinco hospitais de quatro cidades (Lisboa, Porto, Coimbra e Setúbal) para obterem um enorme impacto.

Além disso, teve um caráter discricionário altamente discutível, ao tentar separar os casos muito graves de outros, o que provocou, segundo vários relatos, conflitos diretos com médicos responsáveis por blocos operatórios. No fundo, os enfermeiros tiveram durante estes dias a capacidade real de tomarem decisões sobre quem tinha ou não que ser operado, o que não faz parte das suas competências.

Há ainda as questões ligadas aos sindicatos que convocaram a greve, muito recentes e alegadamente pouco representativos, um facto que já se registou no sector da educação e que ameaça os sindicatos mais clássicos. De repente, estes novos grupos têm mais eficácia no choque com o Governo do que outros movimentos sindicais...

Os movimentos coletivos para arranjar dinheiro são uma das grandes armas da internet. (...) Era impossível que esta novidade (que, em bom rigor, já não tem qualquer novidade) não chegasse como substituto moderno dos fundos de greve

Falta, claro, a característica inorgânica do movimento, nascido com apenas cinco pessoas no Facebook. Pode-se gostar ou não disso, mas alguém no seu perfeito juízo acha possível que este tipo de dinâmicas, que cruzam toda a sociedade civil, não chegue ao mundo do trabalho? Há grupos de Facebook para tudo, gente que se movimenta por causas locais, ambientais, desportivas, culturais, etc, e não podia haver em áreas sindicais? Pode ser novo, estranho, perigoso ou até um terreno mais propício a manipulação, mas é impossível que não exista.

Deste ponto ao crowdfunding vai um passo muito pequeno. Os movimentos coletivos para arranjar dinheiro são uma das grandes armas da internet. Pede-se dinheiro para filmes, para salvar monumentos, para casos isolados de doenças graves, para acudir a problemas sociais, para reabilitar uma escola, para editar um disco... Era impossível que esta novidade (que, em bom rigor, já não tem qualquer novidade) não chegasse como substituto moderno dos fundos de greve.

O crowdfunding traz consigo o anonimato e, naturalmente, a hipótese de poder estar a ser financiado por entidades camufladas, incluindo do sector privado. Além disso, alarga substancialmente a capacidade financeira do movimento, o que permite prolongar as greves por tempo quase indeterminado sem quaisquer perdas para os trabalhadores que adiram ao protesto. Curiosamente, isenta os grevistas de pagarem IRS pela compensação que recebem, mas dá ao Estado uma receita extra de IVA...

As ruturas tecnológicas afetam rigorosamente todas as áreas da sociedade. Os jornalistas sabem isso há bastante tempo, os políticos também. As primaveras árabes, a campanha no Facebook de Trump ou do Brexit, os grupos de whatsapp de Bolsonaro, as campanhas do Twitter, os movimentos dos jovens pró-Corbyn, a criação de movimentos em rede, pouco hierarquizados e com mecanismos de democracia direta são todos consequência das mudanças tecnológicas. Há coisas fabulosas e outras assustadoras, exemplos fantásticos e outros arrepiantes. O crowdfunding pertence à pré-história desta rutura tecnológica e serve para isto mesmo.