Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

Habitue-se

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Quando António Costa, apesar de o PS não ter ficado em primeiro, formou um governo com o voto da maioria dos deputados, o que correspondia ao voto da maioria dos portugueses, a direita falou em golpada e governo ilegítimo. Mas ilegítimo é governar contra a vontade da maioria. Não foi apenas por nos livrar de Passos Coelho que defendi esta solução. Também foi por considerar que este reforço do parlamentarismo abria um novo ciclo de maturidade democrática no nosso país. O parlamentarismo é o estádio mais avançado da democracia representativa. Porque, na sua maior ou menor diversidade, é a maioria parlamentar que melhor representa a maioria dos eleitores.

Lamentavelmente, Costa parece ter sido o primeiro a desaprender a lição que deu ao país. E quanto mais as sondagens o aproximam da maioria absoluta mais cábula fica. Toda a novela com a contagem do tempo congelado da carreia dos professores é exemplo disso mesmo. Não me dedicarei, neste texto, ao conteúdo da questão. Já falei dele noutro momento. Agora a questão é mesmo de forma. E de modo de agir.

O Presidente recordou a Costa que o poder do seu governo repousa no Parlamento a todo o momento. E que a maioria dos deputados que votaram a decisão que o obriga a continuar a negociar uma solução para as carreiras dos professores vale tanto como a maioria dos deputados que que lhe permitiu governar nos últimos três anos

Há um ano, PS, Bloco e PCP negociaram uma solução. Aceitaram o princípio de recuperar o tempo de serviço perdido, deixaram para negociação sindical o prazo e o modo como isso seria feito. Foi isto que permitiu a aprovação do Orçamento de Estado de 2018. Durante um ano, o Governo ignorou esta decisão. Propôs 2 anos, 9 meses e 18 dias (em vez de 9 anos, 4 meses e 2 dias), não negociou nem modo nem prazo e nunca mais saiu disto. Até ameaçou os sindicatos, dizendo que se não aceitassem o que lhes era proposto iriam para as escolas com nada.

Um ano passado, o assunto regressou ao Orçamento de 2019. Na especialidade, todos os partidos menos o PS voltaram a obrigar o Governo a negociar. O Governo ignorou, mesmo depois dos parlamentos dos Açores e da Madeira terem dado parecer negativo à sua proposta e terem aplicado para si mesmo uma solução faseada de reposição completa do tempo perdido. O voto dos deputados do PSD, CDS, BE, PCP, PEV e PAN não vale menos do que o voto do PS. Vale mais, porque fazem maioria. Não há um Orçamento do PS, há um Orçamento de Estado aprovado pelos deputados. É ele que conta, no que o Governo gosta e no que o Governo não gosta. Assim sendo, o Governo está obrigado a seguir a decisão aprovada. E negociar não é, ao contrário do que o PS já dá a entender, o mero gesto formal de se sentar à mesa com os sindicatos. É negociar.

O Presidente da República leu o Orçamento aprovado pelo Parlamento e o diploma do Governo que o ignorava e mandou para trás o que tinha de mandar para trás. Costa julga que pode ignorar a Assembleia da República, Marcelo recordou-lhe que não o pode fazer. Se o Orçamento remete uma matéria para negociação sindical, essa negociação tem de existir. Como garante do regular funcionamento das instituições, o Presidente recordou a Costa que o poder do seu governo repousa no Parlamento a todo o momento. E que a maioria dos deputados que votaram esta medida vale tanto como a maioria dos deputados que lhe permitiu governar nos últimos três anos.

Costa não pode atirar para o Presidente uma responsabilidade que é exclusivamente sua: a de no dia 1 de janeiro os professores não terem qualquer recuperação do tempo congelado. Foi ele que decidiu ignorar por duas vezes a Assembleia. No seu caso, é mais grave do que em qualquer outro primeiro-ministro: ao fazê-lo, nega-se a si mesmo a legitimidade de governar.

Para Costa, a “geringonça” pode ter sido apenas uma forma de segurar o poder. Só que os avanços na História não têm donos. Com esta solução de governo, o regime reforçou a sua natureza parlamentarista. Foi bom para Costa há três anos, é mau para Costa agora. Mas é o que é. Que não nos venha falar de coligações negativas, usando a linguagem que outros usaram contra si em 2015. Foi ele que ajudou a criar esta nova realidade, que tornou a nossa democracia mais rica e madura. Habitue-se.