Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

A proteção do modo de vida europeu

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Já muitos analisaram o deve e haver dos jogos de poder que marcaram a escolha dos comissários europeus. Chegaria tarde a esse debate. Deixem-me, por isso, concentrar-me num pormenor simbólico que também já deu que falar e que, como acontece frequentemente em política, é bastante revelador. Para tentar modernizar a imagem da Comissão Europeia, os eurocratas encontraram um expediente antigo: mudar o nome de coisas velhas para que pareçam novas. Deram aos bafientos comissários nomes mais poéticos como comissário da Democracia e da Demografia ou comissário da Vizinhança e Alargamento. A já tradicional dificuldade de comunicação das instituições europeias agravou-se: agora nem sequer percebemos do que trata cada comissário.

Mas o pormenor revelador é o nome de um comissário específico, que ficou entregue ao grego Margaritis Schinas: comissário para a Proteção do Nosso Modo de Vida Europeu. Como disse Pedro Delgado Alves no programa que faz comigo no Canal Q, tem a sonoridade de Ministério da Virtude Islâmica. Porque parte de dois princípios: que há um modo de vida europeu (não estamos a falar de sistema político, mas de modos de vida), que junta gregos e finlandeses e não turcos ou canadianos. E que esse modo de vida tem de ser protegido. E é quando vamos ver quais são as funções deste comissário que a coisa deixa de soar mal para ser mesmo péssima. Para além de ter a qualificação, a educação e o mercado de trabalho (o que poderia remeter para o modelo social europeu). tem a segurança e as migrações. Ou seja, a política da migração entregue a alguém que tem como função “proteger o nosso modo de vida europeu” é todo um programa.

Um dos erros de muitos europeístas de esquerda é acreditarem que o europeísmo é uma espécie de sucedâneo do internacionalismo. Ignoram o fundamental: o que torna o internacionalismo emancipatório e generoso não é ser transnacional, é ser universal. A diferença não é pequena. No que é universal cabem todos, na construção de novas unidades exclusivas, mesmo que mais alargadas, não. Quem queira construir uma verdadeira comunidade europeia não precisa apenas de instituições, leis, acordos. Precisa de uma nova simbologia que confira à Europa uma unidade que não lhe é natural. Todas as nações, que são construções históricas artificiais, o tiveram de fazer. Os seus heróis, as suas bandeiras, os seus mitos, as suas mentiras. E toda a identidade se constrói em oposição. A fronteira não é apenas física. É simbólica.

Quem queira construir uma espécie de nação europeia não precisa apenas de instituições, leis, acordos. Precisa de uma nova simbologia que confira à Europa uma unidade que não lhe é natural. Todas as nações, que são construções históricas artificiais, o tiveram de fazer. E, como quase todas as identidades nacionais, a unidade faz-se contra um perigo externo. Não por acaso, este comissário para a Proteção do Nosso Modo de Vida Europeu tem a pasta da segurança e das migrações

O nome parece uma cedência à extrema-direita mas é um pouco mais do que isso. A construção da ideia de que existe um “modo de vida europeu” (e não ocidental, ou mediterrânico, ou escandinavo, ou latino, ou qualquer outra coisa) corresponde à necessidade de uma instituição burocrática construir uma legitimidade identitária em tudo semelhante à dos nacionalismos. Tendemos a associar essa identidade à democracia (esquecemos os Estados Unidos, mas adiante) ou aos Direitos Humanos (esquecemos o Holocausto, mas adiante). Mas, visto do resto do mundo, o imperialismo e o colonialismo são, de facto, as marcas mais relevantes da Europa. E dificilmente qualquer construção identitária as ignorará. Quanto muito terá de as reescrever.

O facto deste comissariado usar o termo “proteção” (e não, por exemplo, promoção) também é significativo. E ainda mais quando tem para si a pasta da segurança e das migrações. Como quase todas as identidades nacionais, a unidade não se faz apenas de forma positiva. Faz-se contra um perigo externo. Ele pode ser o expansionismo chinês, os populismos de Trump, a invasão islâmica ou os imigrantes. Cada um escolhe o que lhe der mais jeito. Mas não deixa de ser o que é: uma construção em tudo paralela à construção nacional, que alguns ingénuos julgam que o “projeto europeu” pretende superar. Se alguma vez acontecesse, superaria tanto como os Estados Unidos, a Alemanha ou Itália superaram.

Um dia, numa entrevista que fiz a Nuno Melo, ele assumiu-se como europeísta e defensor da “Europa fortaleza”. Só inocentes encontram aqui alguma contradição. A Europa é, quer ser, um condomínio fechado. Onde cabem vários privilegiados que se protegem do miseráveis do mundo. Dentro do condomínio circula-se livremente e todos dizem que é maravilhoso este lugar onde já não há fronteiras e nações. Mas para o garantir, as fronteiras do condomínio têm de ser impenetráveis, como nunca antes na História. Como poucas nações o tentaram. Que alguém de esquerda confunda isto com internacionalismo nunca deixará de me espantar. É exatamente o contrário. É a proteção do nosso modo de vida, como tantos xenófobos nos prometem.