Antes pelo contrário

Antes pelo contrário

Daniel Oliveira

No estado da campanha, foi dia de polícia bom

Contactos do autor Instagram

Em vésperas de eleições, os debates sobre o estado da nação só podem ser ouvidos tendo em conta os objetivos eleitorais de cada interveniente. Lamentá-lo não é apenas ingenuidade, é sonsice. Com a margem de dúvida a que a democracia nos obriga e a possibilidade de haver incêndios durante a campanha, há uma coisa que sabemos: que António Costa vai ser o próximo primeiro-ministro. O que quer dizer que o debate desta quarta-feira não era, para quase nenhum dos intervenientes, uma guerra por tudo ou nada. Era uma escaramuça para saber quanto fica do pouco ou do muito que há para cada um.

Para o PSD, trata-se de segurar a queda. Rui Rio apenas está a lutar pela possibilidade de ficar no seu posto depois das eleições. Uma probabilidade baixa, mas que um resultado honroso poderia permitir. Até porque os candidatos que se perfilam não têm força para serem vistos como saída para a crise do partido. Mas um resultado claramente mau – que é o que as sondagens indicam – tornará a queda inevitável. E, se for mesmo muito mau, abrirá portas para o regresso de Pedro Passos Coelho, o adversário que António Costa mais deseja. Quanto ao CDS, o inchaço de Assunção Cristas com o resultado nas autárquicas já desapareceu. Tem dois meses para aproveitar o vazio de liderança de Rui Rio e refazer-se do desaire nas europeias. Veremos se consegue.

Neste momentos, a direita bate-se por restos, não se bate pela liderança do país. E isso explica porque vemos milhares de cartazes subvencionados pelos nossos impostos a defender a redução dos impostos. Não vou aqui debater a inexequibilidade de baixar impostos, chegar ao défice zero, aumentar o investimento público e recuperar os serviços públicos. Ela é óbvia. Nem voltar a explicar que o debate em torno da “carga fiscal” é um jogo de palavras que ignora que isso resulta da entrada de mais gente no mercado de trabalho, começando a descontar para a segurança social e fisco. Apenas discuto a tática: fazer dos impostos o centro de uma estratégia eleitoral, num país onde metade ganha tão pouco que nem sequer paga IRS, é uma opção arriscada. Diz-nos que a direita está a disputar o seu próprio eleitorado num momento em que é obrigada a reconhecer que o país está “um poucochinho melhor”. No debate do estado da nação, PSD e CDS picaram o ponto da oposição, regressando a casos antigos, ataques antigos, discursos antigos. Com Mário Centeno no leme das finanças e um grupo parlamentar do PSD com as malas aviadas, é pouca a capacidade de oposição. Resta exigir que os contribuintes paguem menos e o Estado gaste mais.

António Costa tem tentado fazer a espargata, pondo uns a arriscar o corte com os parceiros que lhe deram o poder para tentar passar a ideia de que a governabilidade futura depende de um PS sem amarras à esquerda e fazendo ele elogios rasgados a esta solução. Esta quarta-feira, foi dia de polícia bom

O Bloco e ao PCP estão em situações diferentes. Os bloquistas disputam eleitores ao PS e dosear o ataque é a parte difícil: como avisar para o risco de ter o PS sozinho, sublinhando os seus defeitos, sem fechar as portas a uma nova geringonça, de que depende a utilidade do voto não convicto no BE? Com o PCP as coisas são muito mais complicadas. Os resultados das eleições europeias foram de tal forma trágicos que é provável que, pela primeira vez em muitos anos, a direção comunista esteja perdida quanto à tática que deve seguir. Em tons diferentes, conforme o grau de crispação que resulta da disputa maior ou menor de eleitores com o PS, BE e PCP disseram a mesma coisa: a geringonça só foi boa porque foi geringonça. Se fosse PS seria outra coisa. Explicar que a maioria absoluta é oposto da geringonça não é difícil. É isso, propondo-se pelo menos limitar os movimentos do PS nos próximos quatro anos, que dirão na campanha.

O PS é, de todos, o que está a fazer o jogo mais perigoso. É para mim evidente que António Costa preferia não reeditar a geringonça. Essa decisão ficou clara quando Pedro Nuno Santos foi retirado do lugar de pivô parlamentar; quando o PS fez cair a negociação da Lei de Bases de Saúde para entrar num ziguezague estonteante; quando ameaçou sem aviso dos parceiros uma demissão por causa dos professores; e quando, através de Carlos César, passou a ter um discurso hostil à geringonça. Costa tem tentado fazer a espargata, pondo uns a arriscar o corte com os parceiros para tentar passar a ideia de que a governabilidade futura depende de um PS sem amarras à esquerda e fazendo ele elogios rasgados a esta solução. Em política, dois discursos contrários costumam anular-se. Até às eleições, António Costa terá de decidir qual deles fará. Esta quarta-feira, com um ou outro momento mais agreste, foi dia de polícia bom.

O futuro da geringonça não dependerá dos discursos e promessas de cada um. Dependerá, como aconteceu há quatro anos, da aritmética dos votos. Essa é a grande lição destes quatro anos: as alianças que podem mudar o rumo de um país (ou pelo menos ganhar tempo) dependem mais da correlação de forças do que da boa-vontade dos políticos. Com o resultado das últimas europeias, o sonho de governar só com os comunistas caiu por terra. Nunca o PCP aceitaria manter uma aventura a dois com um Bloco de Esquerda à solta. Com o PSD a preparar uma derrota e o regresso da linha dura ao partido, os acordos com a direita serão improváveis. Sobra o PAN, uma espécie de maioria absoluta com animal de companhia. Só é possível se o PS ficar muito próximo da maioria absoluta. Apostaria mais num Governo de minoria, à espera do momento certo para uma dramatização que leve a uma queda. Uma jogada à Cavaco (correu bem) ou à Sócrates (correu mal). Com Passos Coelho a liderar o PSD, a chantagem sobre os partidos de esquerda seria ainda mais eficaz. Até lá, Costa tenta o plano A: aproveitar os últimos cartuxos para ganhar votos à direita e aproximar-se da maioria absoluta. Não está fácil.