Quem pára a extrema-direita na polícia?
A atuação criminosa de um conjunto de polícias na esquadra de Alfragide, que acabou num julgamento e na condenação de oito agentes, pôs fim à ideia de que a violência policial com motivações racistas corresponde a casos individuais de indisciplina. Até chegar ao julgamento e à condenação, aqueles polícias contaram com a cumplicidade ativa de superiores e camaradas e a passividade de quem internamente deveria ter agido. Não fossem as vítimas jovens ativistas, conscientes dos seus direitos e com acesso à comunicação social, e provavelmente tudo ficaria na mesma. Quero com isto dizer que os polícias são racistas? Não. Nem é essa a questão. Temos, aliás, de parar de discutir o racismo como uma questão pessoal. Uns polícias serão racistas e sabem que o são, outros também o são e julgam que não, a maioria não será mais do que o cidadão médio. Apenas se encontrarão mais vezes em situações em que isso é testado. A pergunta não é, por isso, se os polícias são racistas. É se a polícia, enquanto estrutura de poder e repressão, é racista. E tudo indica que é. Querendo isto dizer que trata, em média, de forma diferente pessoas de etnias diferentes.
Até aqui, estamos a lidar com um problema que é transversal à sociedade portuguesa. Só que a polícia é a força a quem damos o monopólio da violência do Estado. Isso dá-lhe características especiais. E torna-a especialmente apetecível para quem, para além do racismo sociológico, tenha uma agenda política de ódio racial. Por três razões. Primeiro, porque permite uma apropriação dos meios de repressão do Estado, bastante importante para uma corrente política que baseia o seu modelo de sociedade no uso da força irrestrita. Segundo, porque isso garante a impunidade às suas próprias atividades que são, pela sua natureza ideológica, tendencialmente criminosas. Terceiro, porque o discurso das forças policiais, mesmo no terceiro país mais seguro do mundo, é fundamental para transmitir a sensação de insegurança de que se alimentam estes movimentos. Tudo isto fica fácil porque os polícias, por lidarem com a insegurança e com as margens da sociedade, são mais sensíveis ao discurso securitário da extrema-direita. A questão é quando esse discurso ganha uma força tal que passa a ser o dominante. Pior: quando ele passa a sobrepor-se e a silenciar o discurso que temos como mainstream em democracias. É o que está a acontecer na PSP.
Peixoto Rodrigues, presidente do Sindicato Unificado da Polícia (SUP), e Pedro Magrinho, presidente da Federação Nacional dos Sindicatos de Polícia, integraram as listas do Basta! O SUP, um pequeno sindicato envolvido em várias polémicas, representa 16 dos 17 polícias da esquadra de Alfragide que foram acusados de espancar, torturar e insultar jovens negros, com evidentes motivações racistas. Oito deles foram condenados. A ligação entre pequenos sindicatos de polícia e a extrema-direita não é nova. Já em 2009, o presidente do Sindicato de Profissionais de Polícia (SPP) deixou-se fotografar com o presidente do PNR, numa reunião na sede daquele partido, com a bandeira dos neofascistas atrás.
A bonomia com que o corpo da PSP lida com a relação entre uma agenda política de ódio e o comportamento violento e racista de alguns agentes contrasta com a reação indignada que merece qualquer expressão interna de preocupação. O vice-presidente do principal sindicato, a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP/PSP), foi obrigado a demitir-se do cargo por ter dito, numa reportagem da SIC, isto: “Há elementos das várias forças de segurança que exteriorizam as suas ideias racistas e xenófobas, usam tatuagens e simbologias neonazis, pertencem a grupos assumidamente racistas. Isto é do conhecimento de todos e, infelizmente, as organizações nada fazem para expurgar estes ‘tumores’ do seio das forças de segurança. Pergunte-se à Inspeção Geral da Administração Interna, à PSP, à GNR, à Guarda Prisional ou a qualquer outra força: o que fazem quando são detetadas estas situações? Nada, não fazem nada.” Perante isto, o presidente da ASPP, Paulo Rodrigues, respondeu: “O que nos preocupa é que as declarações do Manuel Morais, apesar de terem sido a título pessoal, geraram uma enorme onda de contestação de muitos sócios que entendem que a opinião dele não representa os polícias”. Em resumo: perante a competição com mais 16 sindicatos, a ASPP cedeu ao linchamento de alguém que disse a verdade. Nunca, quando foram noticiados crimes cometidos por agentes ou dirigentes sindicais publicaram fotos de detidos algemados, violando a lei, a posição de qualquer sindicato foi tão firme.
O que interessa neste debate não é a falta de coragem da ASPP. Fosse ela maior e provavelmente os seus associados debandavam para um dos vários sindicatos que têm alimentado mensagens atentatórias do Estado de direito, dos direitos humanos e da lei. O que é assustador é que a pressão dos agentes seja contra quem denuncia o ódio e não contra quem propaga o ódio. Isso diz-nos que, para além dos problemas particulares, de que o caso da esquadra de Alfragide é só o caso mais abjeto, temos uma cultura perigosa instalada na nossa polícia. E insisto que a polícia é “nossa”, não é dos agentes que a servem. É do Estado, que lhe dá as armas e poderes em nome da lei. Quem usa o monopólio da violência legítima do Estado para exprimir o seu ódio a um determinado grupo étnico atenta contra o Estado de direito e a segurança do Estado e deve ser tratado como criminoso. Se em vez disso é quem o denuncia que é perseguido pelos seus pares, temos um problema de segurança interna grave.
O problema existe e ultrapassa em muito este episódio. Páginas de Facebook, como Charlie Papa ou Carro de Patrulha, alegadamente alimentadas por agentes da polícia, são instrumentos privilegiados de propagação do discurso de ódio e de intimidação. Quando foi o caso das declarações do dirigente do SOS Racismo, Mamadou Ba, muitos agentes veicularam mensagens públicas abertamente racistas, identificando-se como agentes policiais. Tudo isto se resumiria a casos de indisciplina, não se soubesse que a extrema-direita tem conseguido infiltrar-se na PSP (na GNR, militarizada, é mais difícil), para dar força à sua agenda política. Já em maio de 2010, Mário Machado se gabava de haver “dezenas de PSP” seus camaradas . Apesar disso, e do historial de violência contra negros, pouco ou nada se fez desde então.
Todas as instituições competentes, europeias e internas, fizeram tocar as sirenes de aviso para o racismo, a violação de direitos humanos e a infiltração da extrema-direita nas forças policiais. Mas, nem mesmo depois de Alfragide, aconteceu alguma coisa. Mentira. Aconteceu: o vice-presidente do maior sindicato foi obrigado a demitir-se depois de dizer que havia racistas na polícia
Em junho de 2018, a Inspeção Geral da Administração Interna (IGAI) anunciou que estava a investigar a presença da extrema-direita nas polícias e, em outubro desse ano, o Conselho da Europa também alertou para a situação. A Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância propôs a instalação de câmaras nas esquadras, nos carros da polícia e nos uniformes, bem como a criação de uma entidade independente que investigue todas as alegações de abuso policial e de racismo. E deixou críticas à IGAI por inoperância. Também os Serviços de Informação e Segurança (SIS) investigam, desde 2015, as ligações de agentes e chefes de polícia ao PNR, relacionando-os com os incidentes ocorridos no bairro da Cova da Moura. E um relatório da IGAI, tornado público recentemente, diz que há graves lacunas na formação dos agentes da PSP e da GNR em matérias relacionadas com direitos humanos.
Todas as instituições competentes, europeias e internas, fizeram tocar as sirenes de aviso para o racismo, a violação de direitos humanos e a infiltração da extrema-direita nas forças policiais. Mas, nem mesmo depois de Alfragide, aconteceu alguma coisa. Mentira. Aconteceu: o vice-presidente do maior sindicato, que repetiu o que está escrito em muitos relatórios, foi obrigado a demitir-se. Está a falar quase sozinho na nossa polícia. E fomos nós que o deixámos só.
Um problema global
O problema está longe de ser nacional. Em 2013, o músico Pavlos Fyssas foi assassinado por um membro da Aurora Dourada, na presença de agentes policiais que optaram por não intervir. A relação entre a Aurora Dourada e a polícia grega foi investigada pela Amnistia Internacional e pela polícia. Em 2014, a Amnistia concluiu que a relação entre o partido neonazi e a polícia grega era apenas a ponta do icebergue de uma cultura de impunidade, racismo e violência, incluindo a utilização sistemática do excesso de força contra manifestantes de esquerda, imigrantes e refugiados. Durante o julgamento de 50 pessoas, incluindo o líder da Aurora Dourada, dois polícias e cinco deputados, por chantagem, explosões e assassínios, dez polícias foram identificados com ligações diretas ou indiretas a atividades criminosas da Aurora Dourada. Calcula-se que metade dos polícias gregos terão votado no partido neonazi. Também a Polícia Federal Alemã reconheceu, em 2019, a presença de elementos de extrema-direita entre os seus agentes e suspendeu cinco – 38 polícias continuavam a ser investigados. O processo surgiu quando se descobriu que cinco agentes em Frankfurt formavam uma célula da NSU, uma organização responsável pelo assassínio de oito imigrantes turcos, um grego e um agente da polícia em 2000. Desde 2018, a presença de membros da Reichsbuerger, de extrema-direita, nas polícias, na função pública e no exército também é investigada.
Nos EUA, a situação é bem mais grave. Os 86 ataques ligados à extrema-direita fizeram, entre 2002 e 2017, 62 vítimas. Em 2011 foi criada uma estratégia nacional antiviolência extremista, mas em 2018, onze dias depois do ataque a Pittsburgh, a Administração Trump cancelou o programa. E a verdade é que os programas de vigilância doméstica de contraterrorismo continuam a ignorar este risco. Para perceber até que ponto vai a incúria, vale a pena ler este excelente artigo do “The New York Times”. Quando as forças de segurança mobilizadas em Charlottesville tentaram reunir informação sobre grupos e atividades da extrema-direita, não encontraram relatórios oficiais nem ao nível estadual, nem federal. Isto, apesar dos supremacistas brancos terem matado, desde o 11 de setembro, mais pessoas do que qualquer outro grupo de terrorismo doméstico. De 2008 a 2017, a extrema-direita é responsável por 71% das baixas causadas por extremistas e o radicalismo muçulmano por 26%. Ao mesmo tempo, a ação da polícia durante manifestações de extrema-direita tende a incidir sobre os contraprotestos. Por norma, a polícia não reconhece grupos de extrema-direita como “hate-groups” e, nalguns casos, negoceia com eles.
O laxismo norte-americano, europeu e português em relação às atividades da extrema-direita, incluindo as suas relações com a polícia, contrasta com a vigilância dedicada a grupos pacifistas, ativistas antirracismo, ativistas ecológicos, e grupos radicais de defesa dos animais. E, com os resultados eleitorais da extrema-direita e o impressionante currículo de criminalidade que vai espalhando pela Europa e pelos EUA, ninguém pode justificar com distração a incúria com que este perigo para a segurança dos Estados está a ser tratado. Ainda mais quando a infiltração da extrema-direita nas polícias parece estar a ser tão eficaz como foi a utilização perversa que fez das redes sociais. Porque anda tanta gente a fingir que não vê? Por negação da realidade? Por ter medo da vitimização? Talvez pensem que até dá jeito ter quem use a mão pesada e expedita. Irão acordar quando a infeção lhes chegar à porta de casa.